quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Manguel mostra porque ler é a única e rica saída






por Kelly de Souza - 22/09/10
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Aqueles que vivem da palavra, que dela tiram seu sustento, ou mesmo aqueles que fazem da leitura uma forma única de achar graça na vida (viciados em letras, como eu), vez ou outra se perguntam: por que, afinal, encontramos nos livros tanta razão de ser, de existir e de continuar? Por que sem eles nossa vida é sempre “pouca coisa”, é sempre menor? Por que escrever ou ler chega a ser para alguns um mantra, um vício, um ópio? Não há respostas definitivas, como sempre. Existem tantas questões envolvendo a busca frenética do ser humano pela palavra, que a própria palavra é incompleta ou insuficiente para explicar nossa paixão por ela. Alfred Doblin, autor do exuberante Berlin Alexanderplatz, certa vez respondeu a uma pergunta que questionava a razão que o levava a escrever. Respondeu: “Não me interessa o livro concluído, apenas o livro que está por vir”.

Para Doblin, escrever é um processo, uma ponte, um caminho que nos leva do presente ao futuro, um fluxo constante de linguagem em que as palavras dão forma à realidade. Quando em 1909 o poeta italiano Filippo Tommaso Marinetti (A Cozinha Futurista) propôs a Doblin a adoção de um método futurista de construção poética, Doblin lhe respondeu: “Cuide de seu futurismo, que eu vou cuidar do meu doblinismo”. Para ele, o caminho não era o método, mas a paixão (“Eu leio, como a chama lê o lenho”).

Parte da resposta sobre nossa ensandecida necessidade de ler e escrever pode ser encontrada na obra de Alberto Manguel, A Cidade das Palavras. Escritor argentino, cidadão canadense, criado em Israel e morando hoje na França, Manguel é um dos mais importantes autores de lingua hispânica, embora tenha aprendido alemão e inglês (línguas em que escreve) antes do espanhol. Trata-se acima de tudo de um “pensador da palavra”. Depois de passar sua adolescência na Argentina, onde atuou como leitor para um cego Jorge Luiz Borges, foi editor em Londres, Paris e Milão. Manguel, aos 62 anos, vive hoje em Mondion (vilarejo francês), numa antiga casa paroquial (anexa a uma igreja do século XII), onde instalou sua biblioteca de 35 mil volumes.

“A Cidade das Palavras” é um ciclo de palestras em que o autor discute o hábito humano de ler, ouvir e contar histórias (para ele essas habilidades são por definição a razão de sermos de fato humanos). Numa entrevista à Revista Veja, em 1999, quando perguntado por que a leitura ainda é tão importante na sociedade, Manguel foi cirúrgico: “A atual cultura de imagens é superficialíssima, ao contrário do que acontecia na Idade Média e na Renascença, épocas também marcadas por uma forte imagética. Pense, por exemplo, nas imagens veiculadas pela publicidade. Elas captam a nossa atenção por apenas poucos segundos, sem nos dar chance para pensar. Essa é a tendência geral em todos os meios visivos. Assim, a palavra escrita é, mais do que nunca, a nossa principal ferramenta para compreender o mundo. A grandeza do texto consiste em nos dar a possibilidade de refletir e interpretar. Prova disso é que as pessoas estão lendo cada vez mais, assim como mais livros estão sendo publicados a cada ano”.

Perguntado se quem lê muito necessariamente escreve bem, Manguel não vacilou na resposta: “Muitos escritores preferem não ler enquanto estão escrevendo, para não influenciar seu trabalho. Mas só há uma forma de aprender a escrever bem: lendo. Lendo você pode descobrir como os escritores fizeram suas obras e ter noção do processo da escrita. Mas não há regras. O escritor inglês Somerset Maugham dizia que “existem três regras para escrever bem. Infelizmente ninguém sabe quais são elas”.

Em outra entrevista, feita no começo deste mês para o jornal El País, Manguel também autor do fascinante Uma História da Leitura, ensaio sobre como a literatura resistiu a tudo e a todos, define bem a ideia central da leitura no século XXI. Instigado sobre as facilidades do mundo contemporâneo e a pasteurização da literatura, ele concluiu: “Vivemos numa época em que valores como brevidade, superficialidade, rapidez e simplicidade são absolutos. Nunca havia sido. Os valores que desenvolveram nossa sociedade foram os da dificuldade (para aprender a lidar com os problemas), da lentidão (para refletir e não agir impulsivamente) e da profundidade (para sabermos investigar um problema). Se abrimos mão desses valores obtemos reações banais, superficiais, que podem ser facilmente manipuladas”. Bingo!

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As fotografias que ilustram esse texto são de autoria do fotógrafo húngaro André Kertész (1894-1985), tiradas entre 1920 e 1970, que integram o livro On Reading. A obra mostra pessoas de diferentes classes e idades, em diferentes partes do mundo e cenários, completamente entregues à atividade e prazer da leitura.

Kelly de Souza é jornalista colaboradora da Revista da Cultura e Blog da Cultura.

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