Fino psicólogo social, o filósofo Schopenhauer notara que os principais inimigos da felicidade humana são o tédio e a dor. Paradoxalmente, ao nos afastarmos de um desses sentimentos, o outro se torna mais provável. Assim, os pobres e necessitados, que precisam lutar por sua sobrevivência, têm sofrimento, mas não tédio. Já aqueles que escapam das dificuldades sociais e econômicas são mais propensos ao aborrecimento e à sensação de vazio. A reflexão me veio à mente a propósito de duas experiências culturais desse fim de ano, relacionadas ao tédio, ao sofrimento e à vida escolar.
Vamos primeiro ao sofrimento. No belo filme Pai Patrão (dirigido por Paolo e Vittorio Taviani, 1977), a primeira sequência é marcante. O pai vai à escola do filho disposto a tirá-lo de lá, pois entende que ele precisa trabalhar, seguindo as tradições da gente humilde de então (o filme, baseado numa história real, se inicia na Sardenha, na Itália da década de 1940). A figura autoritária do pai faz com que o menino levante-se de sua carteira e fique em pé; nervoso, urina nas calças. A professora tenta consolá-lo, mas não pode fazer nada e o menino deixa a aula com o pai.
Logo após a saída dos dois, os alunos fazem uma algazarra, riem do xixi nas calças do colega. Porém, o pai retorna à sala e repreende os alunos, diz que eles não devem rir de seu filho e faz uma advertência: hoje é ele que é tirado da escola para trabalhar, mas em breve serão os outros. A classe fica em silêncio, e os diretores do filme mostram os pensamentos preocupados de alguns alunos. Aqui, há dor e sofrimento, mas não tédio. A escola era um anteparo a um cotidiano cinzento, feito de obrigações muitas vezes cansativas e dolorosas.
Cortando para 2013, nos dirigimos ao tédio. Ao tédio fortemente vinculado à escola e seu cotidiano. De acordo com a reportagem de Amanda Ripley (Bored to Death: To learn just how bored kids are in school, look at Twitter) para a New Republic, o tédio expresso pelos estudantes no mundo todo é uma espécie de epidemia. A matéria apresenta indicadores e casos interessantes. São mostrados tweets e fotos dos próprios estudantes sobre o que estariam sentido na (ou pela) escola. Algumas produções são imaginosas e divertidas, pois como nota uma aluna, com aguda consciência do caráter público de sua imagem/mensagem: “Tweetar um tweet chato parece contraproducente”.
Há uma distinção evidente entre uma escola rara e difícil, para poucos, e que era, em certo sentido, uma proteção contra as adversidades da vida (como a do filme Pai Patrão) e a escola marcada pela universalização do acesso e pelo tédio. É claro, essa polaridade é simplificadora: a “escola antiga” também era feita de dificuldades e sofrimento (quem duvida, deve ler O Ateneu ou “O conto da escola”, de Machado de Assis) e a escola dos dias de hoje não é, o tempo todo, percebida como uma prisão.
O que é caracteristicamente novo, nos tempos atuais, é essa possibilidade dos estudantes elaborarem e manifestarem simbolicamente – em tempo real – sua relação com a escola.
Ao mesmo tempo, se deve desconfiar da ideia de que a “representação” é o próprio fenômeno. Para o sociólogo Erving Goffman, as pessoas representam papéis sociais e agem, em grande medida, conforme as expectativas relacionadas a eles. Nesse sentido, nem tudo que ocorre no “palco” corresponde exatamente aos “bastidores” da vida. E as mídias sociais se parecem cada vez mais com um palco (com um público) do que com bastidores. Essas noções inspiram a análise de uma sugestiva pesquisa sobre o uso de uma rede social por universitários no Reino Unido, do pesquisador Neil Selwyn (Faceworking: exploring students’ education-related use of Facebook)
Em suas postagens relacionadas com a vida universitária, os estudantes geralmente expressam ironias sobre a educação, sobre si mesmos como alunos e sobre seus professores. O que predomina é o desengajamento, mas como uma forma de construir uma identidade (mais ou menos esperada). Como nota, o autor afirma que os alunos “pareciam estar (in)conscientemente replicando e reforçando papéis desenvolvidos em fases prévias da educação escolar, [...] a socialização leva as pessoas a apresentar apenas aquelas partes de suas personalidades que elas consideram apropriadas às normas de cada encontro situado”.
Quando este “papel” – desengajado e irônico, cuja contraface é a aversão ao “CDF” – de estudante tornou-se tão forte na cultura de tantos países? Ao mesmo tempo, o que faz com que seja atrativo, de modo que, mesmo em sociedades que valorizam a educação, o tédio (não só escolar, basta pensar na atitude blasé de muitos ídolos juvenis) e a insatisfação parecem ser uma distinção positiva na autorrepresentação dos estudantes e dos jovens?
Os desdobramentos da discussão são evidentes: como lidar com essa questão? Qual o papel das tecnologias (mais como causas ou consequências)? Entre a dor e o tédio, existe espaço para o prazer e o engajamento, em suma, para a felicidade, na escola?
Por Richard Romancini
Como vimos na coluna anterior, há indicadores de que muitos jovens acham a escola entediante. Mas quando essa tendência começou (se é que podemos falar em tendência)? Um ponto de vista sobre a questão é que o aborrecimento escolar não tenha aumentado, mas sim que exista hoje maior chance dele ser expresso ou percebido. Além disso, a noção de que a escola deve ser agradável aos alunos talvez seja uma ideia mais recente do que pensamos. Foram os educadores modernos que salientaram a motivação e o envolvimento estudantil em relação à aprendizagem, porém, a noção de “bem-estar” do aluno se alargou sempre mais.
Quem argumenta que não foi apenas o instrumento de medida que se alterou, mas sim as próprias condições aferidas, possui, entretanto, outros pontos da questão. O principal diz respeito aos sinais adicionais de desconforto nos ambientes educativos. Os alunos não apenas se entediam, mas abandonam a escola. As queixas dos professores sobre os salários ou a carreira ganham cada vez mais a companhia de reclamações sobre as dificuldades do cotidiano escolar.
Pensar sobre a questão pode ser mais útil do que apenas vivê-la. É claro, a reflexão só é produtiva se tem como objetivo buscar alternativas para as situações de desconforto. Nesse sentido, dois livros publicados em anos recentes são relevantes: Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão (2012), de Paula Sibilia, pesquisadora argentina radicada no Brasil, e Educomunicação: o conceito, o profissional, a aplicação (2011), do professor da ECA/USP Ismar de Oliveira Soares. Ambos fazem um diagnóstico similar sobre a “crise na escola”. As ênfases e alternativas apontadas são diferentes, embora possuam zonas de convergência.
“Será que a escola se tornou obsoleta?”. O argumento principal é que a instituição escolar é uma tecnologia (um artefato destinado a produzir algo) que se mostra inadequada aos dias atuais. A falta de sintonia decorre de a escola demandar um tipo de subjetividade incompatível com a das crianças e jovens dos dias de hoje. O ideal escolar nasceu de um projeto histórico moderno que parece “se dissolver em contato fluído com as lógicas do consumo e dos meios de comunicação”. Surge, assim, uma crise de significado na instituição.
A autora nota que os dispositivos tecnológicos não são a única causa desse movimento histórico, porém fortalecem um ambiente que mina a autoridade escolar. Mas, sendo o fluxo social inevitável, ela defende que vale a pena explorar modos de incorporar a mídia e as redes à educação. No entanto, sem crença descabida na tecnologia, ressalta que essa operação só terá valor a partir do aprofundamento da reflexão sobre o papel da escola hoje. Uma tentativa de reinvenção desta, diz a autora, deveria ter o objetivo de, “contra o tédio e a dispersão, [...] dar sentido à experiência, despertando entusiasmo e vontade de aprender”. Interessados em conhecer melhor as ideias de Sibilia podem ler este artigo ou esta entrevista da pesquisadora.
A preocupação com os sentidos da escola é também desenvolvida no trabalho de Soares que, analisando alguns estudos sobre a juventude atual e a educação, nota que “os jovens estão em busca de novas propostas para a sua formação [...], desejam uma escola que responda a esses anseios e ofereça novos elementos ante suas realidades e vivências”.
Ao também observar o interesse dos jovens pela comunicação e pela cultura digital fora dos muros da escola, o autor defende a valorização do potencial comunicativo dos alunos nesta instituição. Destaca, por isso, experiências exitosas com o uso das mídias que ocorrem na educação não formal, e que poderiam inspirar práticas escolares.
A partir da defesa de uma perspectiva relacionada com a educomunicação, que enfatiza um modo de comunicação mais aberto e democrático entre os indivíduos, o autor argumenta que a questão não é meramente tecnológica, mas ligada a uma preocupação de natureza ética, política e pedagógica. Trata-se de favorecer e enfatizar a participação dos jovens para compromissá-los com o seu aprendizado, idealmente voltado a conteúdos articulados com a vida cotidiana.
Nessa linha, Soares ressalta que a educomunicação pode estimular a interdisciplinaridade, uma vez que o estudante deve ser capaz de perceber para que serve o conjunto de conhecimentos de uma grade curricular, de modo, ainda, a aprender a atuar de maneira transformadora no mundo. Quando um jovem produz um programa de rádio, por exemplo, ao escrever o roteiro exercita e compreende a importância do uso adequado da língua e, conforme o tema abordado, pode recorrer aos saberes escolares para aprofundá-lo ou contextualizá-lo.
As ideias dos autores discutidos não fornecem um receituário pronto e acabado para reformas educativas, porém sugerem indicações importantes sobre o tema. Contra a angústia e o desalento que possamos sentir como educadores, a melhor alternativa é o ciclo reflexão/ação.
Fontes: http://www.neteducacao.com.br/noticias/Coluna/morrendo-de-tedio
http://blog.midiaseducacao.com/2014/03/buscas-de-sentido-contra-o-tedio.html
http://www.neteducacao.com.br/noticias/Coluna/buscas-de-sentido-contra-o-tedio-escolar-as-redes-e-a-educomunicacao