Por Richard Romancini
Vou iniciar essa colaboração na Plataforma do Letramento tentando definir o tema a respeito do qual pretendo discorrer em alguns artigos: o letramento digital. Ao longo dos textos gostaria de avançar, discutindo aspectos que me parecem mais produtivos na abordagem do assunto, particularmente quando ele se relaciona com questões de aprendizagem e, por isso, com o cotidiano dos professores.
Os letramentos tradicionais, como se sabe, envolvem as práticas de leitura e escrita de textos. Não resta dúvida, então, que tanto o falecido escritor José Saramago quanto o ex-presidente (e também escritor) José Sarney são homens altamente letrados. Porém, em 2009 circulou pela internet um texto com um hilário diálogo fictício entre os dois. Nele, a suposta dificuldade de Saramago em limitar suas ideias aos 140 caracteres do microblog Twitter produzia diversos mal-entendidos de comunicação com Sarney.
A ficcionalidade do texto não prejudicava o humor. A graça estava numa possibilidade em que podíamos crer. Quem não conhece alguém letrado, em termos tradicionais, mas que na manipulação das novas formas de produzir, transmitir e consumir mensagens já não viveu situações constrangedoras? Os exemplos são inúmeros: o professor que entrou num site de vídeos pornográficos sem perceber que o projetor ligado ao seu computador transmitia o conteúdo para a classe, a funcionária que se queixou do trabalho numa rede social que seu chefe também lia, o ator famoso que divulgou por engano seu número de celular para milhares de seguidores numa rede social etc.
É claro, os letramentos digitais atravessam com frequência a noção tradicional de letramento, pois muitas vezes apenas ampliam, prolongam e dão novas formas a práticas consolidadas. Assim, grande parte do humor a respeito do uso de redes sociais decorre de equívocos na linguagem textual utilizada.
No entanto, existe também algo novo. O que é esse “novo”? Ao que ele corresponde? Uma abordagem interessante para refletir sobre essas questões é a de Lankshear e Knobel (2012, 2008), que percebem o letramento digital como parte de um conjunto maior de “novos letramentos”. Para esses autores, os novos letramentos são o resultado de uma série de mudanças envolvendo todos os âmbitos em que a nossa experiência está envolvida, entre outros, a nação, o trabalho, a escola e a família.
Desse modo, conforma-se um novo paradigma social, de grande complexidade. Esta se relaciona, por um lado, ao fato de que traços significativos do passado persistem no presente, embora nomear a época atual como “pós-moderna” indique uma superação do que já se viveu. Por outro, as tendências gerais de desenvolvimento social são abertas, dinâmicas e relativamente incertas.
Para compreender melhor a mudança, os estudiosos tentam estabelecer comparações entre o momento atual e o estágio precedente. Assim, para falar de aspectos voltados à aprendizagem, nota-se que o paradigma pós-moderno tende a valorizar mais dimensões como a não linearidade, os processos colaborativos e coletivos de construção do conhecimento, assim como a menor estabilidade deste. No paradigma moderno, a linearidade, a individualidade e a estabilidade geralmente eram maiores.
Vivemos num tempo mais instável e fluido. Como notam Lankshear e Knobel (2012), muitas pessoas no passado talvez nunca tenham tido de elaborar um curriculum vitae, por terem trabalhado sempre num único emprego. Porém, hoje é comum que qualquer pessoa tenha elaborado vários currículos, sempre atualizados e talvez com diferentes modos de organização e ênfases. Central para nosso tema é que no contexto atual os indivíduos “com frequência se veem na necessidade de encontrar novas maneiras de comunicar-se e manter suas relações pessoais” (LANKSHEAR; KNOBEL, 2012, p. 314).
Está aí a essência dos novos letramentos e dos letramentos digitais: ser um indivíduo plenamente participante, um cidadão apto a aproveitar e criar oportunidades no mundo atual implica estabelecer novas formas de comunicação. Tais modalidades, por sua vez, demandam novos aprendizados, habilidades e competências.
Pessoas altamente letradas, como Sarney e Saramago, poderão ter de aprender a viver nesse mundo em que as plataformas e os aparatos digitais, como o e-mail, o Twitter, o Facebook e o YouTube, são centrais à comunicação. É importante notar que essas possibilidades comunicativas envolvem, com novo protagonismo, além do texto, o áudio, o vídeo, a imagem estática e suas combinações.
Com efeito, podemos definir, em linhas gerais, o “letramento digital” como a capacidade de ler/escrever com as novas mídias. Isso envolve uma série de questões instigantes. Porém, é importante reforçar que não há contraposição entre o letramento focado na leitura e na escrita e os novos letramentos: a relação é de sobreposição e hibridismos, principalmente de prolongamento. Por exemplo, ao entrar numa conta de e-mail para criar uma mensagem, utilizamos a leitura e a escrita, que, agora, ocupam também o espaço digital.
Até o século 20, a leitura e a escrita de textos eram básicas, fundamentais e, em certo sentido, suficientes para ser cidadão – o livro foi a expressão do projeto moderno. Para ser um cidadão pleno nos dias de hoje, há a necessidade de agregar àquelas competências as habilidades que envolvem os letramentos digitais. Estes encontram na internet seu símbolo, dando forma à “sociedade em rede” de que fala Manuel Castells (2010).
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Referências bibliográficas
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2010. (A era da informação: economia, sociedade e cultura, v. 1).
LANKSHEAR, Colin; KNOBEL, Michele. “Nuevas Alfabetizaciones: tecnologías y valores”. Teknokultura, Madri, v. 9, n. 2, p. 307-336, 2012. Disponível em: http://www.teknokultura.net/index.php/tk/article/view/113/pdf. Acesso em: 5 maio 2014.
LANKSHEAR, Colin; KNOBEL, Michele (Ed.). Digital Literacies: Concepts, Policies and Practices. Nova York: Peter Lang, 2008.
Os letramentos tradicionais, como se sabe, envolvem as práticas de leitura e escrita de textos. Não resta dúvida, então, que tanto o falecido escritor José Saramago quanto o ex-presidente (e também escritor) José Sarney são homens altamente letrados. Porém, em 2009 circulou pela internet um texto com um hilário diálogo fictício entre os dois. Nele, a suposta dificuldade de Saramago em limitar suas ideias aos 140 caracteres do microblog Twitter produzia diversos mal-entendidos de comunicação com Sarney.
A ficcionalidade do texto não prejudicava o humor. A graça estava numa possibilidade em que podíamos crer. Quem não conhece alguém letrado, em termos tradicionais, mas que na manipulação das novas formas de produzir, transmitir e consumir mensagens já não viveu situações constrangedoras? Os exemplos são inúmeros: o professor que entrou num site de vídeos pornográficos sem perceber que o projetor ligado ao seu computador transmitia o conteúdo para a classe, a funcionária que se queixou do trabalho numa rede social que seu chefe também lia, o ator famoso que divulgou por engano seu número de celular para milhares de seguidores numa rede social etc.
É claro, os letramentos digitais atravessam com frequência a noção tradicional de letramento, pois muitas vezes apenas ampliam, prolongam e dão novas formas a práticas consolidadas. Assim, grande parte do humor a respeito do uso de redes sociais decorre de equívocos na linguagem textual utilizada.
No entanto, existe também algo novo. O que é esse “novo”? Ao que ele corresponde? Uma abordagem interessante para refletir sobre essas questões é a de Lankshear e Knobel (2012, 2008), que percebem o letramento digital como parte de um conjunto maior de “novos letramentos”. Para esses autores, os novos letramentos são o resultado de uma série de mudanças envolvendo todos os âmbitos em que a nossa experiência está envolvida, entre outros, a nação, o trabalho, a escola e a família.
Desse modo, conforma-se um novo paradigma social, de grande complexidade. Esta se relaciona, por um lado, ao fato de que traços significativos do passado persistem no presente, embora nomear a época atual como “pós-moderna” indique uma superação do que já se viveu. Por outro, as tendências gerais de desenvolvimento social são abertas, dinâmicas e relativamente incertas.
Para compreender melhor a mudança, os estudiosos tentam estabelecer comparações entre o momento atual e o estágio precedente. Assim, para falar de aspectos voltados à aprendizagem, nota-se que o paradigma pós-moderno tende a valorizar mais dimensões como a não linearidade, os processos colaborativos e coletivos de construção do conhecimento, assim como a menor estabilidade deste. No paradigma moderno, a linearidade, a individualidade e a estabilidade geralmente eram maiores.
Vivemos num tempo mais instável e fluido. Como notam Lankshear e Knobel (2012), muitas pessoas no passado talvez nunca tenham tido de elaborar um curriculum vitae, por terem trabalhado sempre num único emprego. Porém, hoje é comum que qualquer pessoa tenha elaborado vários currículos, sempre atualizados e talvez com diferentes modos de organização e ênfases. Central para nosso tema é que no contexto atual os indivíduos “com frequência se veem na necessidade de encontrar novas maneiras de comunicar-se e manter suas relações pessoais” (LANKSHEAR; KNOBEL, 2012, p. 314).
Está aí a essência dos novos letramentos e dos letramentos digitais: ser um indivíduo plenamente participante, um cidadão apto a aproveitar e criar oportunidades no mundo atual implica estabelecer novas formas de comunicação. Tais modalidades, por sua vez, demandam novos aprendizados, habilidades e competências.
Pessoas altamente letradas, como Sarney e Saramago, poderão ter de aprender a viver nesse mundo em que as plataformas e os aparatos digitais, como o e-mail, o Twitter, o Facebook e o YouTube, são centrais à comunicação. É importante notar que essas possibilidades comunicativas envolvem, com novo protagonismo, além do texto, o áudio, o vídeo, a imagem estática e suas combinações.
Com efeito, podemos definir, em linhas gerais, o “letramento digital” como a capacidade de ler/escrever com as novas mídias. Isso envolve uma série de questões instigantes. Porém, é importante reforçar que não há contraposição entre o letramento focado na leitura e na escrita e os novos letramentos: a relação é de sobreposição e hibridismos, principalmente de prolongamento. Por exemplo, ao entrar numa conta de e-mail para criar uma mensagem, utilizamos a leitura e a escrita, que, agora, ocupam também o espaço digital.
Até o século 20, a leitura e a escrita de textos eram básicas, fundamentais e, em certo sentido, suficientes para ser cidadão – o livro foi a expressão do projeto moderno. Para ser um cidadão pleno nos dias de hoje, há a necessidade de agregar àquelas competências as habilidades que envolvem os letramentos digitais. Estes encontram na internet seu símbolo, dando forma à “sociedade em rede” de que fala Manuel Castells (2010).
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Referências bibliográficas
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2010. (A era da informação: economia, sociedade e cultura, v. 1).
LANKSHEAR, Colin; KNOBEL, Michele. “Nuevas Alfabetizaciones: tecnologías y valores”. Teknokultura, Madri, v. 9, n. 2, p. 307-336, 2012. Disponível em: http://www.teknokultura.net/index.php/tk/article/view/113/pdf. Acesso em: 5 maio 2014.
LANKSHEAR, Colin; KNOBEL, Michele (Ed.). Digital Literacies: Concepts, Policies and Practices. Nova York: Peter Lang, 2008.
Fonte: http://www.plataformadoletramento.org.br/em-revista/559/o-que-e-afinal-o-letramento-digital.html