Por Eliane Vitorino de Moura Oliveira
RESUMO: Neste trabalho, que tem como base a perspectiva do ISD – Interacionismo sócio-discursivo, analisamos as representações de um indivíduo quando inserido em espaços institucionais do trabalho. Nosso corpus constitui-se da transcrição de conversas gravadas durante interações entre um vendedor de produtos veterinários e oito de seus clientes, e, a partir dele, analisamos as representações desse agenteprodutor em seu ambiente de trabalho, o porquê destas representações e como elas interferem e auxiliam na composição de seu agir. Iniciamos a análise por meio da identificação das representações sobre o mundo social e subjetivo efetivamente mobilizadas pelo mesmo, descrevendo como se manifestam as representações das condições de produção dos textos; apresentamos, também, dentre os aspectos textuais propostos por Bronckart (2003), a organização interna dos textos que compõem o corpus, além de abordarmos outras considerações relevantes para a análise do mesmo, objetivando explicitar o papel da linguagem como instrumento da expressão dos diversos processos que constituem o agir no contexto de trabalho, tendo por base a teoria proposta por Jean-Paul Bronckart e aquilo que foi apreendido durante as discussões favorecidas pela disciplina “Gêneros do discurso: uma perspectiva enunciativa para o ensino de línguas”. Concluímos, entre outros aspectos, que as representações deste profissional sobre o efeito que espera alcançar sobre seus clientes refletem o agir coletivo, em detrimento da constituição de suas representações individuais, o que coincide e insere-se na teoria que temos por base.
Palavras-Chave: Representações. Trabalho. ISD.
Introdução
A interação está presente em todas as situações de comunicação, desde uma conversa informal, natural, distensa, até em textos narrativos, dissertativos ou argumentativos, ou seja, em qualquer circunstância em que indivíduos se encontrem em presença de outro e escolham estratégias discursivas para interagir com seus interlocutores e optem por uma determinada forma comunicativa. Para Pinto (2007:49), a fala é uma das manifestações da linguagem por meio da qual os interactantes podem expressar ideias e emoções próprias. Por isso, o processamento da linguagem é fundamental, uma vez que ai se dá a construção e reconstrução de juízos, a aquisição e uso de informações oriundas de fontes várias e a aplicação da estrutura, sendo compostos textos adaptáveis a cada situação, interação e audiência.
A autora defende que, em certas situações de interação, “as capacidades de linguagem evocam as aptidões requeridas pelo interactante não só para adaptar-se às características do contexto e do referente, como para mobilizar modelos discursivos, dominar as operações psicolinguísticas e as unidades linguísticas.” Quando interagimos socialmente, pelos textos de nossa composição, utilizamos as capacidades de linguagem denominadas ações discursivas e linguístico-discursivas.
Desta forma, observando-se o quadro interacionistasocial proposto por Bronckart (2003), as condutas verbais são formas de ação específicas e interdependentes com as ações não verbais. Diante disso, o autor postula que toda produção textual requer a mobilização, por parte do agente, de suas representações sobre o mundo físico e o sócio-subjetivo, as quais se manifestam em duas direções: a do contexto de produção, constituído pelo lugar de produção, momento de produção, emissor, receptor, lugar social, posição social do emissor e receptor e os objetivos da interação; e a do conteúdo temático (ou referente), aquilo que é ou pode ser dito, através do gênero, marcado por uma construção composicional e um estilo. Bronckart (2003) concebe o texto como composto por três camadas que se superpõe: a infraestrutura geral do texto, os mecanismos de textualização e os enunciativos, alegando ser imprescindível partir para uma análise destes níveis, ou seja, ressalta a necessidade de, em qualquer estudo, levar-se em conta aquilo que ele conceitua como folhado textual. Considerando esta perspectiva, partindo de um corpus constituído pela transcrição de conversas gravadas durante interações entre um vendedor de produtos veterinários e seus clientes, objetivamos analisar as representações de um agente-produtor em seu ambiente de trabalho, o porquê destas representações e como elas interferem e auxiliam na composição de seu agir.
Para tanto, num primeiro momento, buscaremos identificar as representações sobre o mundo social e subjetivo efetivamente mobilizadas por este agente, descrevendo como se manifestam as representações das condições de produção dos textos. Como segundo passo, dentre os aspectos textuais propostos por Bronckart (2003), observaremos a organização interna dos textos que compõem o corpus, ou seja, ainda que de forma ampla, analisaremos a camada central do folhado textual proposto pelo autor: sua infraestrutura geral. Além disso, pretendemos abordar algumas outras considerações relevantes para a análise do corpus em questão, em uma alusão superficial a algumas outras abordagens teóricas às quais chamaremos, neste estudo, de outras visões.
Para chegarmos àquilo que objetivamos, ou seja, implantar a gênese de uma pesquisa sobre o agir discursivo no trabalho de um vendedor, iniciaremos nosso texto apresentando a teoria que nos serve de base, destacando que nosso estudo linguístico-discursivo fundamenta-se, em especial, em Bronckart (2003) e naquilo que foi apreendido durante as discussões favorecidas pela disciplina “Gêneros do discurso: uma perspectiva enunciativa para o ensino de línguas”.
Bases teóricas
Levando-se em consideração que a linguagem tem como preceito essencial a interação entre os indivíduos, uma vez que é na socialização que se dá sua aquisição e a edificação do pensamento, nosso estudo tem como base a teoria social da linguagem edificada em Genebra no século XX, denominada de Interacionismo Sócio-Discursivo (ISD), que tem como principal expoente a obra de Jean-Paul Bronckart. O ISD filia-se a uma Psicologia da Linguagem que se inscreve no quadro epistemológico da corrente das Ciências Humanas/Sociais, e, no que se refere aos seus princípios, dialoga com um número considerável de autores e pressupostos epistemológicos de outras disciplinas, tais como Durkhein, Ricoeur, Vygotsky, Bourdieu, Moscovici, Habermas, Bakhtin, Foucault, Wittgenstein, entre outros. Desta forma, percebe-se que aceita todos os princípios fundadores do interacionismo social e, conforme relata Bronckart (2003), quer ser visto como uma corrente da ciência do humano.
Alguns dos autores citados merecem um destaque neste trabalho. Vygotsky (1984), fundador da psicologia social, concebe a linguagem como res ultado da interação dialética que se dá, desde o nascimento, entre um indivíduo e seu grupo, bem como com o meio social e cultural no qual está inserido. Além disso, revela que o homem, utilizando sistemas simbólicos, entre estes a linguagem, transforma a si e ao mundo, dando à dimensão social um relevante papel no processo de desenvolvimento do ser humano. O autor também afirma que a construção do conhecimento só se estabelece pela linguagem e suas funções básicas: de intercâmbio social, na comunicação com os outros seres humanos, e pensamento generalizante, quando ordena o real em categorias conceituais.
Além de ver como fundamental a interferência de outra pessoa como mediadora do desenvolvimento, assevera ser a zona de desenvolvimento proximal a que estabelece o suporte do outro, cuja ação é transformadora. Bakhtin (1997) declara que os enunciados constituem-se a partir de “tipos relativamente estáveis”, ou seja, formas-padrão elaboradas nas esferas de utilização da língua e construídas sócio-historicamente, relacionadas a diferentes situações sociais geradoras de um gênero com características próprias. Em seu estudo sobre enunciados, enunciação e gênero discursivo, relata que a enunciação é “o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados” (Bakhtin, 1997, p.112). Mesmo não havendo um interlocutor real, a palavra sempre se dirigirá a outrem. Ela comporta duas faces: procede de alguém e se dirige a alguém. É, portanto, determinada tanto pelo falante como pelo ouvinte, sendo produto desta interação.
Para Bakhtin (1997), o centro organizador de toda expressão é o exterior, o meio social que envolve o indivíduo. A enunciação é de natureza social, uma vez todos seus elos, e a sua dinâmica de evolução, são sociais. Vê como verdadeira substância da língua o fenômeno social da interação verbal, através da enunciação ou enunciações. Habermas (1999) assevera que as ações de linguagem e os mundos representados têm estreita relação com as propriedades do contexto em que se dá a produção textual, ou seja, a caracterização do texto depende da ação que está sendo executada, uma vez que o texto é produto da atividade humana, estando, portanto, articulado às necessidades sociais que tanto podem ser cooperativas quanto estáveis. Levantadas essas breves considerações da base que estratifica esta teoria, cabe o estabelecimento de uma, também breve, denominação do que vem a ser o ISD.
O ISD – interacionismo sócio-discursivo
O interacionismo sócio-discursivo refere-se a uma análise das condutas humanas na qualidade de ações significantes ou situadas, cujas propriedades estruturais e funcionais são, em sua gênese, um produto de socialização e contraria as correntes mentalistas e biologizantes em que se baseavam as ciências humanas, sustentando que "as atividades coletivas mediadas pelas práticas de linguagem são primeiras, filo e ontogeneticamente.” (Bronckart, 2003, p. 107). Para o autor (2003, p.13), “é no contexto da atividade em funcionamento nas formações sociais que se constroem as ações imputáveis a agentes singulares”. As condutas verbais são concebidas como formas de ação de linguagem, com a ação discursiva não devendo ser dissociada das demandas sociais. Assim sendo, as propriedades das condutas humanas são resultado de um processo de socialização, possibilitado especialmente pela iminência e pelo desenvolvimento de instrumentos semióticos, configurados em organizações de signos parcialmente autônomos.
Destarte, a semiotização é a origem de uma atividade própria de linguagem, organizada em discursos ou textos. Os signos organizados na linguagem são um fator de estruturação das representações dos sujeitos que produzem linguagem. As produções textuais incidem sobre o modo como um objeto é representado, o que dá à linguagem um caráter estruturante, porque refletem e refratam as representações dos parâmetros da situação de ação de um agente, cuja decisão deve primar sobre a escolha, dentre os gêneros de textos disponíveis na intertextualidade, do que se mostrar o mais adaptado e eficaz para determinada situação de ação. O agente, ao realizar uma ação de linguagem, coloca em interface o conhecimento sobre sua situação de ação e sobre os gêneros de textos, tal como são indexados no intertexto e tal como mobilizam os recursos e os pré- construtos particulares de uma língua natural. Esse processo acaba na produção de um texto empírico com características comuns ao gênero e propriedades individuais definidoras do estilo do agente. Ao produzir um novo texto empírico, há contribuição, por parte do agente, para a transformação histórica permanente das representações sociais que dizem respeito aos gêneros de textos, à língua e às relações de pertinência entre estes e situações de ação.
Outro estudo relevante para o nosso trabalho tem a ver com as pesquisas de Habermas (1999) e Bronckart (2008) sobre o agir no trabalho. O mundo do trabalho tem sido afetado por intenso desenvolvimento e grandes transformações. Por conseguinte, esse campo tem servido de base para várias pesquisas, as quais têm sido realizadas com o objetivo de se compreender melhor os problemas próprios dos trabalhadores e de se procurar subsídios para a resolução dos mesmos. Muitas dessas pesquisas têm abordado as características do trabalho e das atividades específicas de diferentes profissões, nem sempre visíveis, uma vez que os olhares a elas endereçados são perpassados por representações do senso comum, criadas ao longo do tempo. Machado et al (2009) postulam que os textos produzidos pelos actantes, por meio de ações interpretadas pela linguagem, irão se referir a determinada atividade social, sobre a qual exercem influência, assim como influenciam as ações nela envolvidas. Alem disso, concluem que, ao mesmo tempo em que refletem as representações, interpretações e avaliações sociais sobre esta atividade e sobre estas ações, contribuem para sua consolidação ou sua modificação. Bronckart (2008) relata que Habermas desenvolveu uma teoria sobre as atividades humanas e o agir comunicativo, e discorre sobre ela, relatando que tal teoria considera os fatores socioculturais e semióticos quando trata do agir humano.
Para Habermas, as atividades são desenvolvidas ao considerar determinadas representações coletivas organizadas em três sistemas: o mundo objetivo – o mundo físico, constituído pelos conhecimentos sobre o universo tal como são desenvolvidos na sócio-história humana; o mundo social – os conhecimentos sobre as regras, convenções e valores que regem uma atividade; e o mundo subjetivo – produtos dos processos públicos de conhecimento das pessoas mobilizadas na atividade.
Bronckart (2008, p. 23) destaca que o grande valor desta teoria é o de mostrar que a realização de uma agir necessariamente se efetua considerando-se diferentes sistemas de determinações, que podem estar em conflito e não em uma trajetória retilínea determinada pelas propriedades que caracterizam a responsabilidade do agente. E, além disso, afirma que esta análise não soluciona a questão do estatuto e do papel do agir comunicativo. Habermas considera mais importante que o individualismo do saber a maneira como os indivíduos interagem seus saberes, por meio do diálogo e ações, ou o modo como os sujeitos, capazes de falar e de agir, empregam o saber, por isso, os textos podem se inscrever em diferentes modos de fazer, segundo o contexto social e o contexto no qual são produzidos e encontrados.
Ainda que nossa pesquisa aborde esse tema, não é nossa intenção entrar neste mérito, pois, para tanto, seria necessário aportes teóricos oriundos da Ergonomia da Atividade, Clínica da Atividade e Psicologia do Trabalho, disciplinas que estudam a atividade de trabalho fundamentando-se na psicologia de Vygotsky e na filosofia da linguagem de Bakhtin, o que as faz compatíveis com o ISD.
Para ler e saber mais: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/entretextos/article/view/11270
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