sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Linguagem e realidade social. Espelhamento ou construção?


O processo de construção de sentido social e a relação com a linguagem.
Por Iran Ferreira Melo

Durante muito tempo, grandes questionamentos foram feitos, nos estudos sobre a linguagem, acerca da relação entre as palavras e o mundo. Desde o período clássico, reflexões filosóficas sobre como nos referimos ao mundo através da linguagem estiveram presentes na agenda teórica de todo pensamento ocidental. Com várias formas de nomear (referenciação, representação, significação, categorização), a relação existente entre um dizer (falar ou escrever) e um não dizer (objeto do pensamento ou da realidade empírica) vem inquietando filósofos e linguistas e servindo como base para a composição de inúmeros paradigmas teóricos há séculos. A primeira discussão sobre o assunto foi empreendida por Aristóteles.

O filósofo grego já previa uma relação do mundo com a linguagem. Para ele, essa relação ocorria através de um processo intralinguístico, por meio de mecanismos criados na predicação verbal – formas de os homens organizarem dentro do próprio sistema verbal – todas as coisas existentes. As palavras, no pensamento aristotélico, não possuíam sentido isoladamente, mas apenas quando relacionadas a um processo de predicação verbal, através do qual atribuímos sentido ao mundo. Conforme o que o filósofo grego preconizava, é devido às predicações que os vocábulos fazem referências ao mundo. Para ele, o processo de categorização daquilo que nos rodeia se realiza, por excelência, na imanência da língua.

Postulando o contrário da concepção aristotélica, muitos estudos recentes sobre o assunto afirmam que aquilo que damos a entender com nossos usos linguísticos não está previsto de uma vez por todas no sistema da língua, e sim nas formas de vida. Segundo esses estudos, efetivamos o processo de construção de sentido na relação que a linguagem possui com a vida social. Eles defendem que não é possível nos referirmos à realidade social se não for por meio da linguagem, pois essa é a base de qualquer processo remissivo do que existe no mundo. Entretanto, o fornecimento de sentido ao que se escreve ou ao que se fala não depende apenas da construção linguística, mas está profundamente imbricado aos fatores de ordem sociocognitiva.

Essas duas formas de identificar a função da linguagem face à construção social foram debatidas através de vários postulados epistemológicos durante os séculos. Por isso, para identificarmos como o exercício de relacionar a prática linguística à prática social foi discutido em várias épocas, convido você a excursionar por alguns desses postulados. Veremos, em nossa excursão, que houve muito mais discordâncias do que consenso na história das teorias sobre o assunto.

A REPRESENTAÇÃO SOCIAL POR MEIO DA LINGUAGEM: UM PANORAMA
Hoje, os estudos linguísticos entendem não ser eficaz tratar da relação língua/realidade social como, estritamente, um processo de representação, e sim como uma atividade de co-construção da realidade. No entanto, até essa concepção se firmar, surgiram diversas propostas teóricas. Podemos apresentar algumas das mais emblemáticas.
Na Grécia Antiga, por exemplo, a sociedade já procurava entender essa relação. Platão, Aristóteles e os estoicos já teorizavam sobre como a linguagem possui significado na relação com o que não é linguístico.
Essa relação foi pensada pelos gregos a partir da diádica entre um elemento que representa e um representado. Essa relação se configurava num espelhamento entre um elemento e outro, fornecendo a ambos a possibilidade de refletirem entre si. O elemento que representa passou a ser chamado de signo daquele que é representado e este se tratava sempre de uma coisa a qual se podia representar.

Os estoicos criaram a tríade de composição do signo, que passou a ser revista, durante muitos séculos, por aqueles que pensavam filosoficamente a relação linguagem/realidade social: o triângulo composto por semaînon (significante ou palavra), semainómenon (significado ou sentido atribuído à palavra) e prâgma (objeto que a palavra representa).

ESPELHAMENTO E CONSTRUÇÃO
O fato é que ao representar o mundo pela linguagem não estamos apenas espelhando a realidade social, como uma imagem do que existe, mas também contribuindo para a formação dessa realidade, dando sentido e existência a ela, pois toda formação de discurso é uma posição do indivíduo sobre o mundo, ou, como afirmou o pensador russo Mikhail Bakhtin, todo signo é carregado de ideologia e traz consigo uma posição axiológica do indivíduo em relação ao que se refere. Para ele, toda palavra é enviesada. Por exemplo, dizer “negro” não é o mesmo que dizer “afro” quando nos referimos a um indivíduo de tez escura. Afinal, o que estaria implícito nessas escolhas lexicais? O uso de um ou outro termo não é aleatório, está atrelado a fatores de ordem social, cultural e cognitiva que permeiam a interlocução em que tal uso foi feito. Desse modo, é possível assegurar que, de acordo com a escolha de um dos termos, o processo de atribuição construirá sentidos diferentes, pois os referentes (os objetos do mundo, elementos extralinguísticos) serão identificados diferentemente com os atributos culturais do que forem denominados – “negro” ou “afro”.

Esse tipo de reflexão somente é possível se considerarmos que a linguagem é um fenômeno que funciona como um processo intersubjetivo, pragmático e ideológico e que se manifesta eminentemente como prática social.

A reflexão acerca da relação entre a linguagem e a realidade social como um vetor que emerge dos usos linguísticos e aponta para o mundo, entendendo a língua como um espelhamento da realidade social, foi o posicionamento teórico que prevaleceu anos a fio nos estudos da Linguística durante o século XX e que nos fez crer na produção da linguagem como uma maneira de representar as nossas ideias e as coisas do mundo e na compreensão dela como uma forma de decodificar a representação mental do produtor (consequentemente o que este via no mundo). A língua servia, portanto, como uma maneira de retratar o que havia fora dela. Tratava-se de uma postura, essencialmente, dualista acerca da linguagem: de um lado estava a língua e do outro o que ela podia representar.

AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
Nos estudos linguísticos estruturalistas era comum admitir-se a existência de uma Linguística externa e uma Linguística interna, a primeira consistia nos fatos relativos à expansão duma língua fora de seu território e a segunda atribuía à língua valor de um sistema que conhece somente a sua ordem própria. Esta foi a perspectiva que prevaleceu durante a primeira metade do século XX e que compreendia a atividade linguística como um funcionamento imanente, por excelência, a um sistema de códigos, cuja única relação com sua exterioridade era de apontar e refletir, a realidade circundante. Tratava-se de uma concepção de língua como um sistema que representava a realidade, uma espécie de espelhamento do que existe.

A Linguística externa dava conta da reflexão que se fazia sobre o que era exterior à língua e tinha relação com ela, como, por exemplo, os costumes culturais de uma nação que repercutiam no uso linguístico. Contrariamente a isso, a Linguística interna deteve-se a falar do que, de fato, o Estruturalismo acreditava ser a linguagem – um sistema de códigos – ou seja, aquilo que era inerente ao próprio sistema da língua.

Após o advento das perspectivas enunciativas e sociointeracionistas nos estudos linguísticos, a noção de língua como um sistema de representação deu lugar a conceitos que consideravam a atividade linguística não mais como uma forma de retrato da realidade apenas, mas como uma maneira de construir a realidade na interação sociocomunicativa. Para tanto, dispuseram-se campos da Linguística engajados numa agenda que privilegia o processo discursivo da atividade linguística, ou seja, muito mais as condições de funcionamento da linguagem do que o seu sistema estrutural.

Isso permitiu a mudança de foco sobre a língua, de uma abordagem intrínseca que concebia a estrutura linguística como uma forma de refletir/representar o extralinguístico para uma compreensão de que o uso da língua constrói o que é exterior a ela. Ou seja, abandona-se a ideia de que, ao se enunciar algo, aponta-se para esse algo e se assume a concepção de enunciação como um processo que instaura a realidade social.

Uma tendência em perceber a realidade social como constituída através de práticas linguísticas nos permite, hoje, conceber que a noção de língua como representação da realidade, tal qual era usada outrora, não é mais aceita nos estudos linguísticos. Assim, cai por terra o conceito de representação no tratamento dado às atividades linguísticas.

As representações sociais podem ser vistas como estereótipos culturais desenvolvidos na atividade discursiva, ou seja, como uma criação de ideias comuns a uma cultura desenvolvidas por meio da interlocução. Mas é, principalmente, a capacidade humana para a ação discursiva que permite a formação das representações, que significam uma forma de práxis sobre a realidade, e não, apenas, um modo de refleti-la.

Podemos reconhecer, a partir desse ponto de vista, uma concepção puramente pragmática de se enxergar a relação entre a língua e a realidade social, diferentemente da proposta estruturalista que entendia a representação como um espelho. Essa autora propõe uma teoria das representações sociais como uma atuação no mundo, concepção que se aproxima da noção de representação preconizada pelo linguista britânico Norman Fairclough, que entende as representações sociais, os sistemas de conhecimentos e crenças e a formação das identidades como práticas sociais que podem se manifestar como práticas de linguagem. Contudo, por remeter à concepção de representação social como complexo de conceitos que relacionam os objetos do mundo às palavras e que dão corpo a esquemas mentais, o termo representação ainda não é o mais feliz para designar o modo em que é possível, nos estudos contemporâneos da Linguística, compreender como a língua se relaciona com aquilo que lhe é exterior – a realidade social.

Eis que surge um conceito que tenta substituir totalmente a concepção de representação como uma imagem mental previamente instalada e independente da atividade interativa: a noção de categorização discursiva, ou seja, a concepção de que produzimos os objetos do mundo através de mecanismos de referenciação no interior dos nossos discursos, um modo de construção das coisas do mundo por meio da construção de objetos de discurso. Lorenza Mondada e Danièle Dubois foram os principais expoentes dessa perspectiva nos recentes estudos linguísticos.

CATEGORIZAÇÃO
A categorização é um processo dinâmico e, sobretudo, intersubjetivo, que se estabelece no quadro de interação entre locutores, e é suscetível de se transformar num curso dos desenvolvimentos discursivos de acordos e desacordos. A realidade social, desse modo, é criada e interpretada na interação comunicativa e no processo de categorização, o qual podemos entender como um processo de referenciação, sem indicar uma forma de apontar o que existe no mundo, mas de construir.

Os referentes de nosso discurso, isto é, aquilo de que falamos, são construídos em nossas ações sociocognitivas e é exatamente a partir dos primados epistemológicos das teorias sociocognitivistas, que a Linguística dá vazão a esse modo de compreender a relação entre a linguagem e o mundo.

O processo de categorização da realidade, segundo essa perspectiva, não é visto mais como um processo que se situa na relação de espelhamento da realidade na linguagem, mas significa uma prática sociocognitivo-discursiva sobre a realidade, isto é, uma atividade, que se constrói no próprio processo discursivo e na interação cognitiva entre os usuários da língua, ou seja, essa atividade faz referência à realidade ao mesmo tempo em que a constrói. Desse modo, tal perspectiva entende as práticas discursivas como práticas sociais constitutivas da realidade social.

Mondada e Dubois quando adotam a teoria sociocognitivista e interacional, para a qual o mundo não nos é dado, mas o formulamos num fluxo de classificação e memória constantes, tratam de uma concepção segundo a qual os sujeitos constroem, através de práticas discursivas e cognitivas social e culturalmente situadas, versões públicas do mundo. Esse processo de referenciação se enquadra como uma atividade de realização do mundo na linguagem, e não a partir dela.

Enquanto o projeto de representação pressupõe uma estabilidade das entidades no mundo e na língua, é possível, de acordo com a teoria sociocognitivista e interacional, reconsiderar essa proposta teórica de enxergar os problemas das entidades da língua, do mundo e da cognição e passar a focar o processo que as constitui, para, assim, entender que o problema não é mais, então, de se perguntar como a informação é transmitida ou como os estados do mundo são representados de modo adequado, mas de se compreender como as atividades humanas, cognitivas e linguísticas, estruturam e dão um sentido ao mundo.

Essa proposta de referenciação como um processo categorial configura uma perspectiva dialética e dialógica da relação mundo-linguagem e lida com a noção de um sujeito sociocognitivo que constrói o mundo e é, ao mesmo tempo, constituído por ele no desenvolvimento de suas práticas discursivas, entendidas estas, também, como práticas sociocognitivas, por se realizarem no intermédio entre a troca simbólica dos indivíduos em suas interações comunicativas, seus conhecimentos semânticos e pragmáticos compartilhados.

Diante de toda essa abordagem sobre alguns vieses que investigaram a relação entre linguagem e realidade social, ressaltamos que vários deles aqui apresentados foram formas dos cientistas – da língua ou não – exporem suas inquietações sobre a díade incontestável em tela, a qual se constitui ao mesmo tempo em que constitui também o ser humano: a linguagem e a realidade social. Seja sob uma ótica estruturalista, seja sob uma perspectiva funcionalista, antropológica ou sociocognitivista, tal estudo sempre se revelou instigante para a humanidade, portanto, é com a certeza de essa história não terminar aqui, que ratificamos a sua pertinência no que já foi e no que será produzido sobre o assunto.

Iran Ferreira de Melo é professor do Departamento de Letras da UFPE e doutorando em Língua Portuguesa pela USP.

Fonte: http://conhecimentopratico.uol.com.br/linguaportuguesa/gramatica-ortografia/28/artigo209998-1.asp

Um comentário:

  1. Ligia, este artigo está excelente! Nele encontro informações relevantes apresentadas de forma clara e consistente. Parabéns pela seleção criteriosa!

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