Sigamos o conselho borgiano: em lugar de multiplicar autores e realizar extensas biografias ou exercícios de exegese do gênio, por que não imaginar simplesmente que toda a literatura universal é resultado de um escritor único e anônimo e fazer a psicologia desse complexo homme de lettres? Melhor ainda, pensemos numa versão atualizada dessa ideia e a apliquemos especificamente ao campo da textualidade acadêmica. Basta imaginar os textos dos pesquisadores e teóricos como produtos de um único computador dotado de diferentes rotinas de mecanismos generativos capazes de produzir escritos (em série), a partir de determinados pressupostos e estruturas semânticas. Assim teríamos uma tipologia dos variados textos, com seus maneirismos particulares e sua infindável repetição de chavões. Eis, portanto, o primeiro esboço de uma tal possível taxonomia:
1. O “filósofo de botequim” – o texto do filósofo de botequim se caracteriza por sua dupla pretensão de ser simultaneamente poesia e teoria (mais a primeira que a segunda), fracassando miseravelmente, porém, em ambos os quesitos. Seu pecado não é pretender que o texto acadêmico tenha valor literário – o que seria bastante louvável -, mas trocar raciocínios por efeitos discursivos e boutades. Não costuma citar muitos autores, mas aprecia usar frases de Nietzsche, Deleuze ou Derrida, especialmente as de caráter mais enigmático. Não quer explicar nada, mas produzir hermetismos que pareçam sedutores – ao mesmo tempo veiculando a impressão de que leu mais que apenas um ou dois livros inteiros desses autores. Para ser ainda mais chique, usa palavras e até cita bibliografias em alemão, não obstante ser incapaz de compreender qualquer vocábulo nesse idioma. Vejamos um exemplo: “o rizomático de Deleuze nos faz adentrar as veredas do múltiplo, produzindo encontros felizes e devires inesperados…a ‘diferância’ derridiana assinala o infinito da linguagem; como diria Heidegger, ‘die Sprache ist das Haus des Seins’”….
2. O “artista-teórico” (ou “teórico-artista”)
Em suas apresentações normalmente se limita a apresentar slides (e, nesse aspecto, é irmão do ‘amigo dos gadgets’) de obras e performances, em exaustivas descrições de casos e exemplos, ao passo que nos seus artigos faz questão de escrever de modo a não fazer sentido. É admirável sua capacidade de construir raciocínios com aparência de encadeamento lógico, mas inteiramente desprovidos de consequências consistentes. Não sabe bem se quer ser pesquisador ou um criador, mas o melhor é fazer as duas coisas, de modo a garantir que pelo menos uma dê certo. É adepto da “moda” (a moda de ser um “outsider”) e fiel aos autores sancionados como “esteticamente corretos”. Cita com frequência, também, os próprios artistas, sabidamente os piores juízes de seu próprio afazer. No fundo, no fundo, acha essa coisa da academia (e do pensamento lógico) um negócio chato e quadrado, mas como ser artista não é também métier dos mais fáceis, acaba recorrendo ao mercado de trabalho universitário.
3. O “amigo dos gadgets”
Sim, existe este novo gadget aqui, este novo videogame aqui, esta nova tecnologia aqui. A atualidade é reduzida a uma série de casos que não são nunca explicados ou referidos a uma totalidade, mas permanece como resultado fragmentário do admirável mundo novo da técnica. Que mais fazer senão exaltar o extraordinário progresso material que experimentamos? Não se pode pensar sobre os gadgets, apenas admirá-los. Não há como negar que suas apresentações são as mais atraentes (e mais contagiantes em seu entusiasmo infantil pelos brinquedos tecnológicos), mas seus textos são comumente chatos e sem vida. Não se preocupam com o conceito, mas sim com a produção de espanto. Estão sempre up-to-date com os mais recentes aparatos, e às vezes até com os autores em voga no campo (tipo Henry Jenkins), mas não lêem nada que tenha sido escrito antes da década de 1980.
4. O apocalíptico de plantão
Este sofre do mal inverso. Considera tudo que tenha sido realizado nos últimos 50 anos um perigo para a cultura e o já depauperado humanismo. É geralmente erudito, mas só consegue pensar em moldes pré-determinados. Seus autores de cabeceira são, obviamente, os frankfurtianos, mas despidos de toda possível contradição ou elogio ocasional ao presente status quo. Seus textos são geralmente pesados, com longos parágrafos blocados e a constante repetição do termo “crítica”. Gostam de usar consecutivos como “destarte” ou “ergo”, e em seu estilo não admitem nada que seja da ordem do humor (no máximo uma ou outra ironia ácida).
5. O moderninho de plantão
Este se recusa a ler qualquer coisa que soe como “crítica”. Considera chique ser “antenado” e “afirmativo” quanto ao presente. Vê os apocalípticos como resquícios deploráveis de um mundo que já deveria estar há muito tempo enterrado. Recusa-se mesmo a ler qualquer pensador que tenha pendores críticos. Gosta de citar fontes heterodoxas, como letras de músicas ou seriados de televisão e procura abordar os objetos normalmente desprezados pelos apocalípticos. Seu vocabulário inclui de bom grado informalismos, e faz citação após citação (apenas dos mais recentes autores canônicos) sem nenhum pudor.
Obs: obviamente, nenhum de nós escapa inteiramente à sujeição a algum tipo de maneirismo. Tenho consciência daqueles que impregnam meus textos, e alguns até me agradam (outros ainda não consigo evitar). Mas em certos casos, a fidelidade às fórmulas prontas é realmente desalentadora. A retórica do magister dixit, a formação dos “grupelhos” de interesse e a lógica discipular estão entre os maiores males da academia de hoje. Escapar desses moldes deve ser desafio constante para nós, mas com cuidado para que a própria busca da independência e ‘originalidade’ não se torne, também, uma espécie de maneirismo. As vanguardas que o digam.
Fonte: http://poshumano.wordpress.com/2011/09/26/breve-taxonomia-dos-textos-academicos/
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