Evolução de "cibernética" ilustra a dificuldade de entender as novas aplicações dadas às palavras
Por Mário Eduardo Viaro
Um dos deleites de quem se interessa por étimos é criar associações. O raciocínio humano tem muito de analógico. Toda etapa de um sistema linguístico (tecnicamente conhecida como "sincronia") tem regras que a distinguem de etapas anteriores.
Uma língua pode ter irregularidades, mas sempre terá mais regularidades. Algumas, como chinês ou inglês, se valem do mínimo de elementos gramaticais: enfatizam palavras e regras sintáticas. Outras explicitam classificações e categorias que inexistem ou existem parcialmente na realidade, mas são importantes à língua e à visão de mundo da sociedade e do indivíduo.
Esses seres semiexistentes são as categorias morfológicas e morfossintáticas: gênero, número, caso, tempo, modo, aspecto etc. Todos que se esforçaram para criar línguas artificiais mais "lógicas" se debateram com essa multiplicidade de conceitos, eliminaram categorias mais idiossincráticas, mas mantiveram outras, tendo, paradoxalmente, uma visão particular do que seria universal.
Se há fatos universais nas línguas, precisaríamos reconhecê-los em níveis básicos e inegáveis. Tudo o mais só pode ser confirmado por investigação. Dados não devem a priori ser compreendidos com teorias dogmáticas, mas importa saber o que são de fato. É aí que entramos na fronteira desconfortável da etimologia.
Mudanças
Uma das verdades universais que alicerça o estudo histórico (e etimológico) é: palavras mudam. Mudam porque acrescentam ou subtraem sons que antes não tinham, porque esses sons trocam de posição na palavra, porque se transformam, porque o significado fica mais amplo ou restrito. Enfim, nada parece no lugar quando vemos "a mesma palavra" em tempos diferentes.
Como se modificam as estruturas e os valores sociais, tudo faz pensar que, ante a realidade social e cognitiva da língua, Heráclito está mais correto do que Platão. Palavras surgem de repente ou desaparecem, também sons, estruturas, regras sintáticas e demais categorias linguísticas.
Outra verdade universal: não há fronteiras entre línguas. Se não há, o que são línguas? Uma língua advém da uma sensação de sociedade unificada na mente do falante. É fácil, porém, alicerçar-se na suposta impermeabilidade das línguas: um castelhano pode não entender palavra do vizinho basco. Mas não é possível haver línguas puras e isoladas. Se imaginarmos que assim foram numa época, dado um isolamento político ou geográfico, veremos que não eram em outra: projetar a visão romântica de confinamento não é útil, pois não vemos isso nem em línguas insulares.
Palavras migram de língua a língua, por empréstimo: vendas, casamentos, trocas de tecnologia, dominações e discursos filosófico-religiosos são responsáveis pelo fenômeno. No mundo cibernético isso é ainda mais visível.
Cibercultura
Aliás, "cibernético" é boa palavra para confirmar as afirmações polêmicas acima. É proparoxítona. Portanto, não está na língua desde sempre. São raras as proparoxítonas nas cantigas galego-portuguesas e em textos medievais: as mais comuns de origem não culta talvez sejam "árvore", "fígado" e verbos como "cantávamos", mas até essas já foram paroxítonas: árvor, figado, cantavamos. Principalmente no século 15, surgem palavras proparoxítonas, sobretudo latinas aportuguesadas e empréstimos italianos.
Apesar disso, o étimo é antigo. O sentido não era o atual: em dicionários de grego,kybernétes é "piloto", portanto, o adjetivo derivado kybernetikós referia-se a algo ligado ao piloto. Desde Homero há kybernétes e kybernetikós é comum em Platão. O Houaiss (2001) diz que o substantivo feminino "cibernética", com sentido atual, surgiu só no século 20. A mudança de sentido é mais visível que a da forma, pois a palavra é de origem culta (não transmitida de geração a geração por aquisição da linguagem, como as de origem popular, mas ressuscitada pela memória escrita, por um acadêmico).
Contatos
A terminação -ikós forma adjetivos no grego. O raciocínio é o mesmo para grammatikós, adjetivo cuja forma feminina, grammatiké, era usada como substantivo, subentendendo-se "arte": do uso adjetivo em tékhne grammatiké (arte das letras) obtinha-se o substantivogrammatiké (gramática). No dicionário Bailly, há em grego antigo o substantivo kybernetiké(arte da navegação). "Conduzir um barco" equivale a dizer "conduzir as pessoas que estão num barco", daí o sentido amplo de "conduzir pessoas". O original kybernáo, de sentido náutico, passa ao latim já com esse significado: gubernare originará o "governar" português.
A passagem fonética de kybernáo a gubernare não é tão estranha: muitas palavras gregas iniciadas em k- passam a g- no latim (provavelmente, alguma característica da pronúncia na Magna Grécia, sul da península itálica). E há casos de y em palavras gregas que se tornam uno latim. Isso ocorria sobretudo em empréstimos antigos que se popularizaram cedo. O final da palavra não conta nas leis fonéticas: em grego, -áo é desinência verbal da 1ª pessoa do presente do indicativo e corresponde ao -o latino (terminações do infinitivo seriam -ân em grego e -are em latim).
Pode-se perguntar por que kybernáo não se tornou *cybernare em latim. Grego e latim tiveram vários momentos de contato. O fato de romanos dizerem gub- e não cyb- testemunha que a palavra não veio por via erudita mas popular, antes da expansão do Império Romano, que incluiria a Grécia em suas províncias. A transformação de gub- para gov- em português não foi diferente: todo u breve latino tende a o em português e todo b entre vogais se tornav: lupum > lobo, habere > haver.
O dicionário Petit Robert afirma que cybernétique vem do inglês cybernetics e já em 1834 significaria "ciência do governo". Em francês, italiano e inglês, o sentido atual é abonado só em 1948, devido à acepção do título da obra de Norbert Wiener, em inglês. Em português, tanto a informação etimológica quanto a datação disponíveis parecem equivocadas, o que faz duvidar da data de 1948 para o português. O uso da data do inglês para todas as línguas informa - talvez erroneamente - a rápida popularização da acepção, por tradução de textos técnicos (fenômeno mais comum hoje), mas investigação detalhada para confirmar isso está por ser feita.
Assim, a acepção "ciência do governo" aos poucos mudou para "ciência do autogoverno" e, de repente, tornou-se, no jargão científico, o "estudo do controle e da comunicação tanto no animal quanto na máquina". Compreender mudanças semânticas requer a leitura de autores específicos, como Norbert Wiener, e perseguir seu raciocínio. Mas o sentido atual, praticamente único, é bem distinto do original. Quando saímos da "arte de conduzir barcos" para "arte de conduzir pessoas" vemos uma mudança metonímica. Ao sair da imagem de pessoas conduzidas por alguém para a de conduzidas por si mesmas ou de qualquer coisa conduzida por si, a ampliação de sentido faz ver uma mudança metafórica.
Raciocínios
Na mudança metonímica, não há comparação: barcos e pessoas não são vistos como mesma coisa por causa de semelhanças (físicas, por exemplo), como na metáfora, mas por relação de contiguidade (espacial: pessoas estão dentro do barco). Já na mudança metafórica, a ampliação ou redução de sentido mostra que se viu um ponto comum entre coisas distintas (condutor e conduzido são pessoas, portanto iguais e, da mesma forma, pessoas e coisas são seres). Raciocínios tão particulares (A está perto de B, portanto A é B, uma metonímia, ou então A é C, B também é C, portanto A é B, uma metáfora) podem conduzir a monstruosidades lógicas. Não posso dizer que se um livro está sobre a mesa, então o livro é a mesa. Nem que, se sou filho de Josué e meu irmão também, sou meu irmão. Mas esses raciocínios esquisitos caracterizam as principais mudanças semânticas nas etimologias: "fígado" em latim era iecur, que não sobreviveu. Mas um prato chamado iecur ficatum (fígado com figos), de tão popular, passou a denominar metonimicamente o fígado (ficatum) mesmo quando servido sem figos.
Caldo
Caldo" vem do latim calidum, "quente" (como o italiano caldo e o francês chaud), mas em português deixou de ser adjetivo e especificou "líquido quente". Com o tempo, houve movimento contrário, ao se generalizar o sentido a qualquer líquido (metaforicamente, usamos a palavra até para líquidos frios, como "caldo de cana").
Há outras transformações observadas desde que Bréal organizou essas tendências na semântica histórica, mas os movimentos lato sensu de metonímia e metáfora parecem explicar a maioria das mudanças de sentido. Conhecê-las ajuda a entender etimologias, não a chegar a étimos, pois nada substitui a investigação documental. O uso exclusivo do raciocínio em etimologia prega peças, pois a história das palavras está pronta a desmentir verdades sobre o passado atingidas pela razão.
Uma língua pode ter irregularidades, mas sempre terá mais regularidades. Algumas, como chinês ou inglês, se valem do mínimo de elementos gramaticais: enfatizam palavras e regras sintáticas. Outras explicitam classificações e categorias que inexistem ou existem parcialmente na realidade, mas são importantes à língua e à visão de mundo da sociedade e do indivíduo.
Esses seres semiexistentes são as categorias morfológicas e morfossintáticas: gênero, número, caso, tempo, modo, aspecto etc. Todos que se esforçaram para criar línguas artificiais mais "lógicas" se debateram com essa multiplicidade de conceitos, eliminaram categorias mais idiossincráticas, mas mantiveram outras, tendo, paradoxalmente, uma visão particular do que seria universal.
Se há fatos universais nas línguas, precisaríamos reconhecê-los em níveis básicos e inegáveis. Tudo o mais só pode ser confirmado por investigação. Dados não devem a priori ser compreendidos com teorias dogmáticas, mas importa saber o que são de fato. É aí que entramos na fronteira desconfortável da etimologia.
Mudanças
Uma das verdades universais que alicerça o estudo histórico (e etimológico) é: palavras mudam. Mudam porque acrescentam ou subtraem sons que antes não tinham, porque esses sons trocam de posição na palavra, porque se transformam, porque o significado fica mais amplo ou restrito. Enfim, nada parece no lugar quando vemos "a mesma palavra" em tempos diferentes.
Como se modificam as estruturas e os valores sociais, tudo faz pensar que, ante a realidade social e cognitiva da língua, Heráclito está mais correto do que Platão. Palavras surgem de repente ou desaparecem, também sons, estruturas, regras sintáticas e demais categorias linguísticas.
Outra verdade universal: não há fronteiras entre línguas. Se não há, o que são línguas? Uma língua advém da uma sensação de sociedade unificada na mente do falante. É fácil, porém, alicerçar-se na suposta impermeabilidade das línguas: um castelhano pode não entender palavra do vizinho basco. Mas não é possível haver línguas puras e isoladas. Se imaginarmos que assim foram numa época, dado um isolamento político ou geográfico, veremos que não eram em outra: projetar a visão romântica de confinamento não é útil, pois não vemos isso nem em línguas insulares.
Palavras migram de língua a língua, por empréstimo: vendas, casamentos, trocas de tecnologia, dominações e discursos filosófico-religiosos são responsáveis pelo fenômeno. No mundo cibernético isso é ainda mais visível.
Cibercultura
Aliás, "cibernético" é boa palavra para confirmar as afirmações polêmicas acima. É proparoxítona. Portanto, não está na língua desde sempre. São raras as proparoxítonas nas cantigas galego-portuguesas e em textos medievais: as mais comuns de origem não culta talvez sejam "árvore", "fígado" e verbos como "cantávamos", mas até essas já foram paroxítonas: árvor, figado, cantavamos. Principalmente no século 15, surgem palavras proparoxítonas, sobretudo latinas aportuguesadas e empréstimos italianos.
Apesar disso, o étimo é antigo. O sentido não era o atual: em dicionários de grego,kybernétes é "piloto", portanto, o adjetivo derivado kybernetikós referia-se a algo ligado ao piloto. Desde Homero há kybernétes e kybernetikós é comum em Platão. O Houaiss (2001) diz que o substantivo feminino "cibernética", com sentido atual, surgiu só no século 20. A mudança de sentido é mais visível que a da forma, pois a palavra é de origem culta (não transmitida de geração a geração por aquisição da linguagem, como as de origem popular, mas ressuscitada pela memória escrita, por um acadêmico).
Contatos
A terminação -ikós forma adjetivos no grego. O raciocínio é o mesmo para grammatikós, adjetivo cuja forma feminina, grammatiké, era usada como substantivo, subentendendo-se "arte": do uso adjetivo em tékhne grammatiké (arte das letras) obtinha-se o substantivogrammatiké (gramática). No dicionário Bailly, há em grego antigo o substantivo kybernetiké(arte da navegação). "Conduzir um barco" equivale a dizer "conduzir as pessoas que estão num barco", daí o sentido amplo de "conduzir pessoas". O original kybernáo, de sentido náutico, passa ao latim já com esse significado: gubernare originará o "governar" português.
A passagem fonética de kybernáo a gubernare não é tão estranha: muitas palavras gregas iniciadas em k- passam a g- no latim (provavelmente, alguma característica da pronúncia na Magna Grécia, sul da península itálica). E há casos de y em palavras gregas que se tornam uno latim. Isso ocorria sobretudo em empréstimos antigos que se popularizaram cedo. O final da palavra não conta nas leis fonéticas: em grego, -áo é desinência verbal da 1ª pessoa do presente do indicativo e corresponde ao -o latino (terminações do infinitivo seriam -ân em grego e -are em latim).
Pode-se perguntar por que kybernáo não se tornou *cybernare em latim. Grego e latim tiveram vários momentos de contato. O fato de romanos dizerem gub- e não cyb- testemunha que a palavra não veio por via erudita mas popular, antes da expansão do Império Romano, que incluiria a Grécia em suas províncias. A transformação de gub- para gov- em português não foi diferente: todo u breve latino tende a o em português e todo b entre vogais se tornav: lupum > lobo, habere > haver.
O dicionário Petit Robert afirma que cybernétique vem do inglês cybernetics e já em 1834 significaria "ciência do governo". Em francês, italiano e inglês, o sentido atual é abonado só em 1948, devido à acepção do título da obra de Norbert Wiener, em inglês. Em português, tanto a informação etimológica quanto a datação disponíveis parecem equivocadas, o que faz duvidar da data de 1948 para o português. O uso da data do inglês para todas as línguas informa - talvez erroneamente - a rápida popularização da acepção, por tradução de textos técnicos (fenômeno mais comum hoje), mas investigação detalhada para confirmar isso está por ser feita.
Assim, a acepção "ciência do governo" aos poucos mudou para "ciência do autogoverno" e, de repente, tornou-se, no jargão científico, o "estudo do controle e da comunicação tanto no animal quanto na máquina". Compreender mudanças semânticas requer a leitura de autores específicos, como Norbert Wiener, e perseguir seu raciocínio. Mas o sentido atual, praticamente único, é bem distinto do original. Quando saímos da "arte de conduzir barcos" para "arte de conduzir pessoas" vemos uma mudança metonímica. Ao sair da imagem de pessoas conduzidas por alguém para a de conduzidas por si mesmas ou de qualquer coisa conduzida por si, a ampliação de sentido faz ver uma mudança metafórica.
Raciocínios
Na mudança metonímica, não há comparação: barcos e pessoas não são vistos como mesma coisa por causa de semelhanças (físicas, por exemplo), como na metáfora, mas por relação de contiguidade (espacial: pessoas estão dentro do barco). Já na mudança metafórica, a ampliação ou redução de sentido mostra que se viu um ponto comum entre coisas distintas (condutor e conduzido são pessoas, portanto iguais e, da mesma forma, pessoas e coisas são seres). Raciocínios tão particulares (A está perto de B, portanto A é B, uma metonímia, ou então A é C, B também é C, portanto A é B, uma metáfora) podem conduzir a monstruosidades lógicas. Não posso dizer que se um livro está sobre a mesa, então o livro é a mesa. Nem que, se sou filho de Josué e meu irmão também, sou meu irmão. Mas esses raciocínios esquisitos caracterizam as principais mudanças semânticas nas etimologias: "fígado" em latim era iecur, que não sobreviveu. Mas um prato chamado iecur ficatum (fígado com figos), de tão popular, passou a denominar metonimicamente o fígado (ficatum) mesmo quando servido sem figos.
Caldo
Caldo" vem do latim calidum, "quente" (como o italiano caldo e o francês chaud), mas em português deixou de ser adjetivo e especificou "líquido quente". Com o tempo, houve movimento contrário, ao se generalizar o sentido a qualquer líquido (metaforicamente, usamos a palavra até para líquidos frios, como "caldo de cana").
Há outras transformações observadas desde que Bréal organizou essas tendências na semântica histórica, mas os movimentos lato sensu de metonímia e metáfora parecem explicar a maioria das mudanças de sentido. Conhecê-las ajuda a entender etimologias, não a chegar a étimos, pois nada substitui a investigação documental. O uso exclusivo do raciocínio em etimologia prega peças, pois a história das palavras está pronta a desmentir verdades sobre o passado atingidas pela razão.
Fonte: http://revistalingua.uol.com.br/textos/80/o-trajeto-ate-a-cibercultura-260799-1.asp
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