Refletir sobre a importância das trocas entre os parceiros como momentos
significativos no processo ensino-aprendizagem remete, necessariamente, à
psicologia sócio-histórica como paradigma de nossas reflexões. Cabe lembrar,
dentro do espectro de reflexões que esta psicologia sugere, os objetivos e as
finalidades que, acredita-se, deva ter a ação educativa. Temos por pressuposto de
nosso trabalho a meta maior de, inseridos no contexto em que vivemos e na
realidade manifesta em nosso país, criar condições para que os alunos se tornem
cidadãos que pensem e atuem por si mesmos. Acima de tudo, espera-se que eles
sejam pessoas livres de manipulações e conduções externas e que consigam ter a
capacidade de pensar e examinar criticamente as idéias que lhes são apresentadas
e a realidade social que partilham.
Este movimento de compreensão do mundo que aparece dialeticamente na escola
implica ações de investigação e de discussão para a internalizaçâo de funções
mentais que garantam ao indivíduo a possibilidade de pensar por si. Para tanto é
preciso estimulá-lo a operar com idéias, a analisar os fatos e a discuti-los para
que, na troca e no diálogo com o outro, construa o seu ponto de regulação para
um pensar competente e comprometido com determinadas práticas sociais.
A elaboração de idéias e o estudo de fatos conforme sugerimos garantem a
conquista do conhecimento, desde que as atividades propostas para os alunos
tenham por base as interações entre sujeito e objeto (mundo). Tais interações
permitem ao sujeito ultrapassar a impressão inicial das idéias que lhe chegam
e buscar o que está além delas, oculto, mais profundo e sistematizado, de
forma a instrumentalizá-lo para o exame da realidade. Não é possível, no
entanto, abordar a relação entre sujeito e objeto que se desenvolve na escola
sem discutir seu papel enquanto promotora do conhecimento.
Pedagogicamente, as discussões sobre a função da escola e seu papel dentro
da sociedade tomaram caminhos diversos nos últimos anos e, principalmente,
a partir da década de 80, quando vários estados da Federação passaram a ser
governados por partidos menos autoritários e quando algumas secretarias de
estado da Educação como a de São Paulo, universidades e educadores em geral
recolocaram a discussão sobre as funções crítica e libertadora da Educação. Os
entraves colocados pela burocracia estabelecida nas redes públicas pelos
regimes militares motivaram muitas celeumas, e o professor foi, desde então,
pressionado a rever a sua prática e a avaliar os resultados com seus alunos.
Assim, nos últimos anos, muito se falou da formação do professor e do quanto
nossa sociedade ainda não teria percebido a urgência desta questão do preparo
para o exercício competente da tarefa de educar. O atraso nas disposições
práticas que pretendem formar o professor torna-se um problema mais grave
quando notamos que o mundo atual pauta sua organização social e cultural
pelo reconhecimento da importância de informar e divulgar conhecimento.
Estranho paradoxo: o mundo da globalização precisa difundir suas conquistas
tecnológicas mas não é capaz de solucionar o entrave em que se chegou
quando se afirma a urgência de capacitar professores para educar, dilema que
se amplia e agrava quando o país em questão pertence ao chamado mundo dos
"países atrasados".
Coloca-se, novamente, um problema central: o avanço da tecnologia não tem
contrapartida na vida cotidiana dos cidadãos e, entre estes, os professores e
alunos envolvidos na realidade da Escola Pública, onde grande parte dos
membros da comunidade escolar não tem acesso às novas conquistas da
tecnologia. Note-se que não nos estamos referindo à televisão ou ao rádio, meios
de comunicação de massa que há muito pertencem à vida diária dos brasileiros.
O que causa estranhamento é notar a confecção de livros e material didático a
partir de sofisticados softwares de autoria quando a maior parte dos alunos e
professores não possui o seu microcomputador em casa. O mundo pode ser
conectado via Internet e muitos dos nossos alunos saem da escola para
enfrentar o mercado de trabalho antes de completar o 1°- Grau. Talvez existam
mesmo aqueles que se comprazem com tal situação, tema que extrapola os objetivos deste artigo, mas pretendemos aqui reforçar a possibilidade de
discutir criticamente este quadro por meio da ação consciente de professores
capazes de promover interações em suas salas de aula.
Ora, tal descompasso nos reconduz ao mundo das políticas públicas para a
Educação no Brasil. Quando nos defrontamos com estatísticas de reprovação,
reeditamos as nossas velhas preocupações sobre o papel da escola e o que ela tem
feito com os seus alunos, sobre como trabalhar com esta realidade e como
conseguir resultados mais satisfatórios.
Das tendências atuais, uma que nos parece melhor colaborar para esta reflexão é
a psicologia sócio-histórica, e, dentro dela, as práticas sociointeracionistas são as
que acenam para caminhos diferentes daqueles propostos pela escola mais
tradicional.
A Constituição Social do Homem
A psicologia sócio-histórica traz em seu bojo a concepção de que todo Homem se
constitui como ser humano pelas relações que estabelece com os outros. Desde o
nosso nascimento somos socialmente dependentes dos outros e entramos em um
processo histórico que, de um lado, nos oferece os dados sobre o mundo e visões
sobre ele e, de outro lado, permite a construção de uma visão pessoal sobre este
mesmo mundo. O momento do nascimento de cada um está inserido em um
tempo e em um espaço em movimento constante. A história de nossa vida
caminha de forma a processarem todos uma história de vida integrada com outras
muitas histórias que se cruzam naquele momento.
Como seres humanos e, portanto, ontologicamente sociais, passamos a construir a
nossa história só e exclusivamente com a participação dos outros e da apropriação
do patrimônio cultural da humanidade.
Temos assim um movimento de constituição do Homem que passa pela vivência
com os outros e vai-se consolidar na formação adulta de cada um de nós. A
criança e o adulto trazem em si marcas de sua própria história - os aspectos
pessoais que passaram por processos internos de transformação -, assim como
marcas da história acumulada no tempo dos grupos sociais com quem partilham e
vivenciam o mundo. Assim, o indivíduo transforma-se de criança em adulto
processando internamente, por meio de seu livre-arbítrio, as diversas visões de
mundo com as quais convive.
Toda esta discussão com certeza tem em VYGOTSKY e em outros psicólogos
russos a sua origem, e seu aprofundamento vem sendo feito à luz de experiências
especialmente do campo educacional.
Na teoria sociointeracionista de VYGOTSKY, encontramos uma visão de
desenvolvimento humano baseada na idéia de um organismo ativo cujo
pensamento é constituído em um ambiente histórico e cultural: a criança
reconstrói internamente uma atividade externa, como resultado de processos
interativos que se dão ao longo do tempo.
Esta reconstrução interna é postulada por VYGOTSKY na lei que denominou de
dupla estimulação: tudo que está no sujeito existe antes no social
(interpsicologicamente) e quando é apreendido e modificado pelo sujeito e
devolvido para a sociedade passa a existir no plano intrapsicológico (interno ao
sujeito). A criança vai aprendendo e se modificando.
Quando, por exemplo, a criança passa a usar um conceito que aprendeu no social,
só vai ampliar a sua compreensão quando o internalizar e puder pensar sobre ele.
O conceito de mãe pode-nos ajudar a entender, pois evolui da mãe pessoal de cada
um para o conceito mais amplo de Mãe.
VYGOTSKY salienta que as possibilidades que o ambiente proporciona ao
indivíduo são fundamentais para que este se constitua como sujeito lúcido e
consciente, capaz, por sua vez, de alterar as circunstâncias em que vive. Nesta
medida, o acesso a instrumentos físicos ou simbólicos desenvolvidos em gerações
precedentes é fundamental.
Ao nascer, as situações vividas vão permitindo, no universo da vida humana,
interações sociais com parceiros mais experientes - adultos ou companheiros de
mesma idade - que orientam o desenvolvimento do pensamento e o próprio
comportamento da criança. Nesse processo de intermediação onde a linguagem,
principal instrumento simbólico de representação da realidade, desempenha papel
fundamental, postula-se a transformação das funções psicológicas elementares em
superiores.
A função é um instrumento de pensamento. Existem funções psicológicas
elementares, como a memória (orgânica, imediata), e superiores, como 0 raciocínio
e a atenção voluntária. O desenvolvimento da função psicológica superior (FPS)
está diretamente relacionado com a mediação operada pela linguagem. É o sujeito
se apropriando das coisas e transformando-as. A FPS principal é a vontade, pois
possibilita a emergência de todas as outras funções.
O Papel da Linguagem nas Interações Sociais
A passagem das funções psicológicas elementares para as superiores ocorre,
portanto, pela mediação proporcionada pela linguagem que, na abordagem vygotskiana, intervém no processo de desenvolvimento intelectual da criança
desde o momento de seu nascimento; por si só, a criança não se apropria
qualitativa e quantitativamente dos conhecimentos desejáveis que alcança por
meio de interações profícuas com os elementos mais experientes do seu grupo
social.
A linguagem do meio ambiente, que reflete uma forma de perceber o real num
dado tempo e espaço, aponta o modo pelo qual a criança apreende as
circunstâncias em que vive, cumprindo uma dupla função: de um lado, permite a
comunicação, organiza e medeia a conduta; de outro, expressa o pensamento e
ressalta a importância reguladora dos fatores culturais existentes nas relações
sociais.
Desta forma, o confronto das concepções iniciais de mundo da criança com
aquelas apresentadas pelos parceiros de seu ambiente torna-se fundamental para
a apropriação de significados diferenciados que, dialogicamente, constituirão
sentidos a serem negociados.
VYGOTSKY estabelece uma importante distinção entre significado e sentido: aquilo
que é convencionalmente estabelecido pelo social é o significado do signo
lingüístico; já o sentido é o signo interpretado pelo sujeito histórico, dentro de seu
tempo, espaço e contexto de vida pessoal e social.
Quando nos referimos a negociação, estamos valorizando as trocas entre os
parceiros em sala de aula, pois é nas interações que tanto o conceito científico
pode ser mais detalhado pelo professor, pois passa a ser mais discutido em um
processo descendente, quanto os conceitos mais cotidianos dos alunos passam a
ser enriquecidos e tomam um caminho mais ascendente, pois são ampliados pelo
conhecimento científico, elaborado historicamente.
Quando a linguagem se dirige aos outros, o pensamento torna-se passível de
partilha. Essa acessibilidade do pensamento manifesta-se, pois, na e pela
linguagem, expressando, ao mesmo tempo, muitos outros aspectos da
personalidade do sujeito.
A fala, uma das formas de linguagem através da qual os significados sociais são
compreendidos e acordados, encontra-se permeada por expressões afetivas que se
tornam igualmente alvo das interações: preferências, antagonismos,
concordâncias, simpatias e antipatias. A ação e a fala unem-se na coordenação de
várias habilidades, entre elas o pensamento discursivo.
Observa-se, então, a objetivação dos sentidos, os quais dão aos signos um
caráter mais pessoal e valorativo, permitindo ao sujeito articulações internas que
requerem negociações para alcançar significados. Assim, VYGOTSKY faz do significado das palavras a unidade de análise de suas pesquisas sobre
atividade instrumental, onde o principal instrumento simbólico é a linguagem.
Para ele, a palavra, sendo um microcosmo da consciência, contém em seu
significado a possibilidade de analisar as relações entre pensamento e
linguagem. A unidade mínima do pensamento e da linguagem é o significado
da palavra, ou seja, é no significado que o pensamento e a fala se unem,
criando condições para o desenvolvimento do pensamento lingüístico e da fala
intelectual.
Interação: Diálogo com Parceiros Mais Experientes
Adultos e crianças, professores e alunos podem conferir às palavras significado
e sentido diferentes. Desta forma, os sujeitos mais experientes, ao interagirem
com as crianças, estimulam-nas não só na apropriação da linguagem, como
também na sua expansão, possibilitando, assim, a elaboração de sentidos
particularizados, que dependem da vivência infantil e da obtenção de
significados mais objetivos e abrangentes.
As interações sociais na perspectiva sócio-histórica permitem pensar um ser
humano em constante construção e transformação que, mediante as interações
sociais, conquista e confere novos significados e olhares para a vida em
sociedade e os acordos grupais.
Assim, a interação de membros mais experientes com menos experientes de
uma dada cultura é parte essencial da abordagem vygotskiana, especialmente
quando vinculada ao conceito de internalização: é ao longo do processo
interativo que as crianças aprendem como abordar e resolver problemas
variados. É por meio do processo de internalização que as crianças começam a
desempenhar suas atividades sob orientação e guia de outros e,
paulatinamente, aprendem a resolvê-las de forma independente.
O processo de internalização pode ser entendido como:
"(...) a reconstrução interna de uma operação
externa, onde uma série de transformações se
processam: a) uma operação que inicialmente
representa uma atividade externa é
reconstruída e começa a ocorrer internamente.
b) um processo interpessoal é transformado
num processo intrapessoal. c) a transformação
de um processo interpessoal num processo
intrapessoal é o resultado de uma longa série de eventos ocorridos ao longo do
desenvolvimento."
VYGOTSKY, ao desenvolver sua teoria, parece não ter pretendido criar um modelo
simples e linear de transmissão da experiência cultural do adulto para a criança.
O pensamento aparece como diálogo consigo mesmo e o raciocínio como uma
argumentação metacognitiva; a atividade mental não é nem pode ser mera cópia
do diálogo adulto/criança, posto que esta última participa ativamente da
interação: a internalização transforma o próprio processo e muda sua estrutura e
funções. Desta forma, a internalização não pode ser entendida como adoção
passiva do conhecimento previamente apresentado à criança pelo adulto. Antes, é
um processo de reconstrução mental do funcionamento interpsicológico.
O processo de internalização, com todas as suas particularidades, caracteriza-se
como uma aquisição social onde, partindo do socialmente dado, processamos
opções que são feitas de acordo com nossas vivências e possibilidades de troca e
interação.
Para ler mais: http://www.crmariocovas.sp.gov.br/pdf/ideias_28_p111-122_c.pdf
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