A senhora Francisca de França Pires Germano comemora 64 anos no próximo dia 16 de setembro. Já o senhor Paulo Alves de Souza completa 71 anos, um dia depois, em 17 de setembro. Mas para além de aniversariarem perto, os dois têm semelhança maior: fizeram parte da turma de alunos do projeto pioneiro de alfabetização popular desenvolvido pelo educador Paulo Freire, em 1963, no município de Angicos (RN), localizado a 171 Km da capital Natal.
"Eu sei ler uma carta, sei ler qualquer coisa.” (Crédito:
Eduardo Mendonça/Ufersa)
“Apareceu uma pessoa perguntando no povo das casas quem queria estudar. Eu já estava em outra escola, lia e escrevia um pouquinho, mas a ‘aula’ [o projeto] de Paulo Freire foi um reforço na minha vida, porque tinha muitas coisas”, conta Francisca. Com 13 anos na época, ela estudou junto de outros dez alunos, no período da noite. “Aprendi muita coisa, o que a professora Valquíria passava. Escrevia tijolo, depois ela passava os homens construindo casa no filme. Era muita boa aquela escola.”
Freire adotou o ensino por meio de gravuras e imagens que retratavam o cotidiano dos trabalhadores. O educador criticava o sistema tradicional de alfabetização que utilizava cartilhas como didática, baseada na repetição de palavras soltas ou frases. “A professora ensinou o que era a palavra povo. Vim a saber isso só na escola de Paulo Freire”, afirma Francisca. E o que é povo? “Somos nós, a gente”, responde ela.
Além de ter como objetivo ensinar a ler e escrever jovens e adultos, a experiência freireana – nascida em 1962, quando ele era diretor do Departamento de Extensões Culturais da Universidade do Recife – estava focada no ensino para a cidadania e politização dos alunos, baseando-se em três conceitos: investigação, tematização e problematização. Uma das características é promover a discussão sobre os assuntos surgidos a partir das palavras aprendidas. Para Freire, alfabetizar era também conscientizar sobre os problemas cotidianos, e propiciar a compreensão do mundo.
A experiência em Angicos alfabetizou 300 trabalhadores – 156 homens e 143 mulheres – em 40 horas, ganhando destaque mundial. Dentre os alunos, estavam domésticas, operários, agricultores, artesões, serventes de pedreiro, pedreiros, comerciantes, motoristas, carpinteiros, lavadeiras de roupa, bordadeiras, mecânicos, uma parteira, um vaqueiro, um soldado, uma prostituta, um jornaleiro e cinco desocupados. O foco era combater o analfabetismo que atingia 70% do Rio Grande do Norte e 75% de Angicos.
Os alunos
Na época, Souza tinha mais de 18 anos e não era alfabetizado. Na escola do educador Freire, teve o primeiro contato com livros e cadernos. “Iniciamos a ler e escrever, e não sabia não antes. Depois dessa experiência, estudei até a quarta série. Não foi difícil. Ficamos a vontade e sei escrever meu nome, sei ler uma besteirinha. Pouco, mas tá bom”, fala. Dos 15 alunos que estudavam na mesma sala de aula que ele, a maioria também não era alfabetizada.
Apesar de ajudar o pai no trabalho o dia inteiro, desde os sete anos, fazendo cerca nas fazendas próximas, quando chegava às 19h, estava dentro da escola. “Ia cansado, mas tinha vontade de aprender, porque não sabia... Sempre quem não sabe, tem vontade de aprender. Estudei o período das 40 horas, depois fui para a outra escola para não perder tempo de aprender.”
“Minha família não tinha condições de estudar. É muito importante a gente hoje saber escrever e ler, apesar de não ser formado, para votar, falar alguma coisa. Pode até falar errado, às vezes, e quanto mais não é formado, se julga analfabeto, mas não somos analfabetos não, eu sei ler uma carta, sei ler qualquer coisa”, avalia Francisca. “Minha mãe nunca quis aprender, e eu ajudava ela em casa com isso quando precisava.”
Hoje, ela é aposentada, está casada e tem quatro filhos. “Nasci e cresci aqui, casei, estudei em Angicos, e em Angicos vou ficar. E meus filhos terminaram tudo o segundo grau”, diz ela orgulhosa de que os filhos completaram o ensino médio e de os cinco netos também estarem na escola.
Já Souza nasceu em Ceará Mirim, a 28 Km de Natal, mas foi para Angicos ainda pequeno e diz não pretender sair da cidade. Trabalha cuidando de cabras nas fazendas e mora com a esposa. Também, seus nove filhos terminaram os estudos e os 30 netos frequentam a escola. Os cinco bisnetos deverão ir pelo mesmo caminho, acredita ele.
"Toda vida gostei de aprender. Sempre que tinha tempo,
eu estudava." (Crédito: Eduardo Mendonça/Ufersa)
Quando perguntado quais eram as dificuldades que tinha antes de se alfabetizar e que não tem mais, responde: “Porque a gente que não sabe nada, nada sabe. Hoje, se eu chego em qualquer canto, vejo um papel, ou na rua pego alguma coisa que tem letra, sei dizer o que tem ali... To participando daquilo que tem ali no papel... Se não tivesse aprendido, passava e nem sabia que tem ali”, explica.
“Vou dizer uma coisa. Tudo que faz com gosto é bom de aprender. Graças a Deus, toda vida gostei de aprender. Sempre que tinha tempo, eu estudava. Nas horas vagas do trabalho, pegava caderno e lápis”, completa ao lembrar do passado.
História
Em razão da experiência de Angicos, João Goulart, presidente na época, chamou Paulo Freire para organizar a Campanha Nacional de Alfabetização, com o objetivo de ensinar dois milhões de jovens e adultos. Mas o golpe de 64 impediu que o programa continuasse. Freire foi preso e exilado, voltando ao Brasil apenas em 1979. “Sem a curiosidade que me move, que me inquieta, que me insere na busca, não aprendo nem ensino”, afirmou o educador em sua obra “Pedagogia da Autonomia”.
Documentário
Para resgatar Angicos, a Universidade Federal Rural do SemI-Árido (Ufersa) produziu o
documentário “40 Horas na Memória: Resgate da Experiência dos Alunos de Paulo Freire em Angicos/RN”, apresentado em agosto. Filmado nas residências de cada um dos participantes, em breve, o público em geral poderá ter acesso. “Vamos participar de festivais de curta-metragem”, diz o diretor do documentário, Passos Júnior.
Ex-alunos de Angicos se reúnem para assistir documentário
(Crédito: Eduardo Mendonça/Ufersa)