quarta-feira, 11 de setembro de 2013

JOÃO WANDERLEY GERALDI, UM PESQUISADOR FORA DAS PAREDES DE UM AQUÁRIO.



O professor João Wanderley Geraldi fez sua carreira na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Hoje, aposentado e colaborador visitante da Universidade do Porto (Portugal), não produz menos. Suas ideias e pesquisas circulam no país e no exterior em forma de palestras, cursos, bancas de defesa de dissertações e teses, livros e artigos (e, por que não, em forma de contrapalavra de seus leitores, que não são poucos!). Suas idéias também se fazem compartilhar em forma de entrevistas, como a que se segue, que foi generosamente concedida a nós em setembro de 2009 e que agora chega aos leitores neste número organizado em homenagem a ele.
Jauranice Rodrigues Cavalcanti
Marina Célia Mendonça

1. O que o levou a escolher a carreira de professor? Por que Letras?

Cheguei a professor vagarosamente. Creio ter sido bom aluno durante meus estudos, o que não significou ter deixado de fazer bagunças, porque lembro de alguns dos castigos que recebi; ou nunca ter deixado de fazer as tarefas que me impunham, porque lembro da perda de pontos pelas entregas atrasadas. Mas o percurso deve ter começado por aí, quando estudante: as minhas primeiras aulas foram particulares, de latim! Mas não alimentava nenhum desejo de ser professor. Aconteceu ter feito concurso público para bancário (Banco do Brasil) e ter sido nomeado para a cidade de São Luiz Gonzaga, onde havia uma escola cenecista. Num final do expediente externo do banco, o gerente do banco fez uma reunião dos funcionários para contato com um diretor da escola: ele procurava professores voluntários para dar aulas à noite nesta escola. Eu acabara de fazer 19 anos, fazia o curso de Direito em Santo Ângelo e o curso de Economia em Cruz Alta. Aceitei o voluntariado meio conduzido por um colega que tinha sido professor antes de trabalhar no banco. Dei aulas de Geografia Geral e Geografia do Brasil. Logo depois, assumi as aulas de Português. Fiquei nesta escola durante os anos de 1966 a 1969, quando fui transferido para outra cidade. Nestes anos todos, os alunos me fizeram professor. Minha transferência já foi para fazer o curso de Letras, para me ‘formar professor’. Havia desistido do curso de Economia e já estava formado em Direito. Este foi o começo e também o período em que me preparei para deixar de ser bancário. Sempre trabalhando com o ensino então ginasial e colegial. Em 1974 fui convidado a dar aulas no ensino superior, mas a experiência durou apenas dois meses: fui demitido porque minha presença ‘denegria’ a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Santo Ângelo: eu era reconhecidamente um sujeito de esquerda. O vagarosamente com que comecei minha resposta vem daí: foram dez anos de um bancário professor, depois de um professor bancário para finalmente me tornar um professor, decisão tomada precisamente quando demitido do ensino superior santo-angelense! No ano seguinte era já professor universitário, na cidade vizinha de Ijuí, e de lá me transferi para a Unicamp, onde fiz toda minha carreira. Formei-me, pois, professor pela paixão pelo trabalho que fui aprendendo a fazer com os alunos, com os colegas, com a liberdade de pensar e a não submissão às rotinas: sabia o que era rotina pela experiência de bancário, e o magistério foi, inicialmente, meu espaço de liberdade intelectual pela qual me perdi de amores: paixão não se explica, vive-se.
Letras: porque sempre fui um leitor voraz. Em minha casa não circulavam livros, exceto os da escola trazidos pelos irmãos mais velhos. Depois que me alfabetizei, comecei a frequentar uma pequena biblioteca infantil que existia na minha cidade. Foi lá que me apaixonei por histórias. Nunca mais deixei de ler literatura e isto me levou a ensinar português e deste ensino ao curso de Letras. Todo meu percurso indicava um caminho pelos estudos literários – minhas primeiras aulas no ensino superior foram de Teoria da Literatura – mas as oportunidades que se abriram para mim foram de estudos linguísticos, primeiro num curso de especialização, e depois as próprias vagas disponíveis no ensino superior na Faculdade onde iniciei de fato minha carreira. Talvez por isso eu seja um linguista atípico: gosto de circular por temas e prefiro tratar da linguagem a tratar da língua tornada objeto numa estrutura a ser esquadrinhada. O que não significa desconhecer sua utilidade, mas minhas exigências me levaram a ir além para pensar fora do aquário de uma teoria: as paredes de um aquário não permitem nem o mergulho vertical da profundidade, nem o nado largo da horizontalidade onde se dão os encontros com outros campos e outros saberes.

2. Você saiu da sala de aula do ensino básico e foi para o ensino universitário. Mesmo assim, continuou preocupado com o ensino básico. Fale um pouco sobre essa sua aproximação dos professores do ensino fundamental e médio, quando pesquisador.

Em primeiro lugar, infelizmente ainda é preciso registrar: o curso de Letras forma professores, mesmo que os ‘pesquisadores universitários’ queiram desconhecer este fato. Assim o ensino está presente nas aulas do curso de Letras não só pela prática de ensinar que nele se professa, mas também porque o ensino é um dos temas desta formação. É claro que existem cursos para formação de ‘pesquisadores’ em literatura e língua para aqueles que não pretendem ser professores – ainda que venham a sê-lo no ensino superior e venham a formar, em geral de má vontade, professores!
Para além desta formação inicial que já obriga a pensar os outros níveis escolares, o contato com professores em exercício da profissão foi, para mim, extremamente salutar porque eles me apontaram questões a serem pesquisadas, problemas enfrentados são pistas de questões a serem estudadas na pesquisa.
Mas há outra razão: a da ação interferente na realidade escolar brasileira. Não se trata de achar que aqueles que se recusam a esta ação interferente vivam numa torre de marfim: há muitos modos de interferir, de ser cidadão na sua própria profissão. Eu escolhi este caminho, não é o melhor e nem o único, mas é o que me foi possível, que me alegrou e alegra: compartilha de pré-ocupações. É certo que não se é interferente somente quando se trabalha com professores dos níveis anteriores do ensino. Em minha história, também interferi o quanto pude na própria universidade, tanto na organização do curso de formação, na oferta deste curso em diferentes turnos, quanto na política interna da administração universitária. Na vida acadêmica, nunca me constitui autista. Há os que preferem não ver e escutar aquele que está ao lado, centrados que estão em suas próprias questões. Eu busquei questões que outros me trouxeram, e não foram poucas. Infelizmente, num balanço de final de carreira, devo confessar que ajudei menos do que imaginava, mas não menos do que a cada momento poderia fazê-lo.

3. Como você vê a relação entre pesquisa e ensino?

A universidade é uma instituição de formação em que se pesquisa! Ela não é um instituto de pesquisa que ensina. Sua centralidade está precisamente na formação e esta demanda, por sua própria natureza, a pesquisa como seu suporte. Não há formação universitária sem pesquisa, independentemente da temática desta pesquisa. Para ensinar sobre qualquer tema, é preciso pensar nele, refletir sobre ele, ir além do já produzido, participar do alargamento de seus limites conhecidos. Do contrário a universidade seria mera depositária do já sabido, do conhecido. E uma formação sobre o já conhecido é uma formação voltada para o passado, quando a vida que se vive se projeta para o futuro. Esta relação necessária entre pesquisa e ensino diferencia o docente universitário do pesquisador do laboratório de qualquer empresa: os interesses são de outra ordem! A partilha é da essência da pesquisa universitária. E esta partilha se faz não só entre pares, mas também entre aqueles que se fazem nossos pares e que serão a continuidade (não o continuísmo) da vida reflexiva e indagadora. A distorção contemporânea na universidade é a desvalorização do trabalho de formação, em qualquer de seus dois níveis (graduação e pós-graduação) como se a universidade fosse apenas um instituto de pesquisa. Um aluno de pós-graduação não é um pesquisador suplementar do grupo de pesquisa, ele é também um aluno em formação e que não será somente pesquisador, mas possivelmente docente universitário. Como a pós-graduação não se preocupa com isso – com a docência universitária – fomos construindo pesquisadores não docentes que exercem a docência!

4. Você acha O texto na sala de aula ainda um livro atual? Por quê?

O que faz a atualidade de um livro são as necessidades de seus leitores. Como o livro ainda tem sido usado e lido, os leitores o fazem ainda atual. Talvez a linguagem despretensiosa usada pelos autores dos textos, sem prejuízo da reflexão profunda sobre os temas que abordam, venha contribuindo para esta permanência do livro nas prateleiras de estudantes e professores há mais de 25 anos. Por outro lado, é inegável que muitas das questões postas hoje como recentes encontram seu primeiro tratamento já naqueles textos que constituem esta coletânea.

5. Nesses 25 anos depois da publicação de O texto na sala de aula, onde você acha que houve maiores mudanças? No ensino de produção de texto? No ensino da leitura? Nas aulas de análise linguística?

Creio que grandes modificações foram introduzidas pelos aprofundamentos nos estudos dos gêneros discursivos. Estes têm implicação nas três práticas: a leitura, a escrita e a reflexão sobre os recursos expressivos (entre os quais se incluem os gêneros). Infelizmente, do meu ponto de vista, esta mudança provocou um retrocesso, não porque o estudo dos gêneros ou de qualquer outro recurso expressivo por natureza produziria um retrocesso. Explico-me. As práticas têm seu foco na aprendizagem e não no ensino: este resulta delas e por ricochete nelas interferem. O estudo dos gêneros altera o foco e centra a preocupação no ensino: trata-se de ensinar os gêneros e a partir deste conhecimento utilizá-los nas práticas de leitura e produção de textos. Ora, este é o sentido do ensino tradicional. Há que se aprender o que se ensina (e aprender não significa refletir sobre o que se vive, se observa, mas recuperar as reflexões que outros já fizeram sobre o objeto em estudo, no caso um gênero). Neste sentido, o foco é do ensino e não da aprendizagem. Obviamente numa escola há ensino e há aprendizagem. A questão de fundo é o foco tomado como essencial: a escola é uma casa de aprendizagem (de professores e alunos) ou é uma casa de ensino (em que professores sabem e ensinam o que sabem a quem não sabe, seus alunos). Meu receio é que as mudanças atuais tenham provocado esta ‘tranquilidade’ dos objetos a ensinar, com prejuízo óbvio para as práticas em que aquilo a ser aprendido nem sempre estava pré-definido, e por isso ocorria como acontecimento e como experiência.
Assim mesmo, com os cuidados que a reflexão anterior impõe, pode-se dizer que o ensino de língua materna, no Brasil, sofreu uma mudança que se fez sentir principalmente na produção de textos e na leitura de textos, nesta ordem. Creio que a reflexão sobre os recursos expressivos continua a ocorrer irregularmente, porque a orientação tem sido precisamente aquela de partir dos objetos para os aprender, e não das práticas para nelas apreender recorrências, configurações e com isso delas extrair ou elaborar abstrações sobre a língua e seus recursos.

6. Sobre as avaliações como ENEM, SARESP, SAEB... você acha que elas contribuem para melhorar o ensino?

Nestes quase 15 anos de implantação de sistemas de avaliação, os resultados têm sido pífios. Aliás, mesmo que as notas obtidas tivessem uma elevação considerável, este dado nada poderia significar se não forem levadas em conta as exigências formuladas nas respectivas provas. A questão essencial é que na política educacional geral foram selecionados e mantidos dois eixos: a elaboração de parâmetros e a avaliação dos resultados. As condições desiguais de cada região, de cada escola, de cada professor e de cada aluno são aí desconsideradas. Os resultados das avaliações permitem a construção de políticas que chamarei aqui de ‘remendos’: a formação de professores (uma política recente), a melhoria da qualidade do material didático (PNLD), a distribuição do material didático nacionalmente, a implantação do piso salarial (ainda em discussão no mundo jurídico). Ora, estes ‘remendos’ dificilmente mostrarão seus resultados se mantidos os dois eixos centrais que desconsideram as condições reais de entrada dos depois ‘examinados’ e as condições de trabalho escolar a que são submetidos (eles e seus professores). Uma prova nacional teria que ter diferentes critérios para levar em conta estas desigualdades. Infelizmente, o que as avaliações têm produzido são hierarquizações. E muito pior ainda: têm dado força à meritocracia. Dentre as propostas neoliberais, considero uma delas a mais hedionda possível: a correlação entre os resultados nestas avaliações e o salário dos professores, precisamente porque desconsidera as condições reais de vida de cada escola, suas localizações, seus problemas etc. Trata-se, com propostas deste tipo – e ela chegou a ser verbalizada por uma felizmente ex-Secretária do Estado de São Paulo – de apostar no aprofundamento do fosso da desigualdade, que muitos querem fazer parecer que sejam diferenças! 

7. Como você vê o estudo do texto/gênero em materiais didáticos no Brasil hoje?

Penso que na resposta à questão anterior (de número 5) já apontei os problemas que orientam a feitura dos materiais didáticos: trata-se de organizar o ensino apostando que a aprendizagem é dele consequência. A centralidade das práticas exige outro enfoque: o que se vai aprender delas é que define o encaminhamento do ensino e este vai partir sempre não do que supostamente já se sabe, mas do que o aluno mostrou concretamente que sabe. Penso que em nossa área, os materiais didáticos mais importantes seriam obras de literatura ao alcance dos alunos (e ao alcance aqui não quer dizer adequadas aos alunos, que isso não existe!), coletâneas de textos (literários ou não), dicionários e gramáticas. Infelizmente, o chamado livro didático tem a pretensão de reunir tudo isso num só lugar, mas o organiza na forma de unidades, lições, do que tem a ser ensinado! Ele é produto da concepção de escola como centralmente uma casa de ensino, em que se pode também aprender...  

8. Você tem tido bastante contato com a pesquisa e o ensino fora do Brasil. Vê muitas diferenças daquilo que temos aqui? 

Não é verdadeiro que eu tenha bastante contato com a pesquisa e o ensino fora do Brasil! Acho que este meu contato é bastante restrito: conheço um pouco a realidade de Portugal e um pouco menos ainda a da Alemanha. Nestes, enfrentam-se também dificuldades semelhantes àquelas que aqui enfrentamos: a formação intelectual que demanda tempo não corresponde ao valor contemporâneo dado à velocidade. Também há problemas em função das migrações internas na comunidade europeia. Recém agora os países europeus começam a provar do veneno que ajudaram a consolidar. Um dos grandes feitos do neoliberalismo globalizado foi a globalização da miséria (a que corresponde obviamente uma concentração nunca vista da riqueza do mundo em mãos de poucos).
Mas há uma diferença bastante significativa: toda a aposta nestes países foi e continua sendo na definição dos objetos de ensino e, a partir deles, nas metodologias capazes de fazer com que estes objetos sejam aprendidos pelos alunos (mesmo que estes os desvalorizem na prática). Nunca houve um período em que as práticas linguísticas fossem dominantes e o ponto de partida da atividade escolar. Por isso, as ideias da centralidade na aprendizagem, a defesa das práticas, a fundamentação dos processos em concepções não representacionais da linguagem surpreendem os colegas alemães e portugueses. Não que estas mesmas concepções não tenham frutificado nestes países. Há inúmeras pesquisas em intercompreensão, em interações de sala de aula, etc que se fundam numa perspectiva mais discursiva e pragmática. Mas elas não chegaram a ter uma formulação para a escola, como aqui foram feitas na década de 1980. Na Alemanha, o ensino conduz todo o processo, e a definição de seus conteúdos permanece quase inalterada. Experiências diferenciadas são aceitas (ainda que não mereçam projeção nacional e aplausos como tem em Portugal a Escola da Ponte), desde que passado o período de experiência os alunos se submetam às provas do tipo ‘tradicional’ e sejam nelas muito bem sucedidos. Do contrário, a experiência se encerra (mas jamais se esquece!). Em Portugal, somente agora, com os novos Programas Oficiais, começa a se alterar este modo de caminhar, mas com certa dificuldade proveniente de outras políticas impostas aos profissionais da educação, com demissões, fim de planos de carreira, etc. Lá (Portugal e Alemanha) como cá – note-se quanta briga faz a imprensa brasileira neoliberal contra a distribuição de qualquer migalha entre o povo ‘miúdo’ – é preciso economizar nas políticas sociais para sobrarem recursos para o enriquecimento do mundo financeiro e sua ciranda.

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