Por: Eliana Rezende
Este post encerra a série sobre escritos e leitores em tempos digitais. Longe de significar uma conclusão, coloca-se como sendo intenções de apontamentos impressos à tinta.
Você pode conhecer melhor toda a série de artigos seguindo os pontos destacados no texto a seguir.
O século XXI está assistindo um ponto onde nossa sociedade coetânea passa pela dessacralização da escrita contínua, linear e exerce características intertextuais, que se fragmentam em múltiplos sentidos.
Até o advento da web, o universo de produção da escrita era tangível. Poderíamos mesmo chamá-lo de analógico, pois encontrava nas palavras a forma máxima de sua expressão. As palavras nominavam ideias e ganhavam nas tintas impressas seu poder de materialização onde o dito e pensado vinham à existência, corporificavam-se.
As entrelinhas eram caminhos extras para inquirir e perscrutar o passado, o dito ou escrito. Teciam possibilidades a partir do não dito. Ofereciam descanso ao olhar e esteio para a mente fluir. Descansavam a palavra, ao mesmo tempo em que ofereciam espaços suspensos para a imaginação trafegar. Era comum o leitor simplesmente pousar as mãos sobre os escritos e esperar que ideias e palavras se acomodassem à sua mente. A leitura seguia ritmada por movimentos de ir e vir no texto, no tempo, nos pensamentos. As palavras, degustadas uma a uma pelo leitor iam dando corpo ao que se chamava obra de um escritor. Tempos de comunicação estreita e de um diálogo constante entre o escritor e seu leitor.
Hoje, no entanto, nos defrontamos com um universo de representações e produções que em muitos casos nunca passarão pelos processos de materialização física e que não perdurarão o suficiente para chegar ao futuro. Escritos que surgem e que são substituídos quase que instantaneamente por outros revelam essa fluidez. Muitos são os estímulos e em geral não se dá ao leitor o tempo para estar a sós com o escrito. Espera-se sempre entretê-lo com imagens, movimentos, sons...
O grande paradoxo que vivemos contemporaneamente é de como uma sociedade que produz tantos registros possa correr o risco de passar para a história como uma cultura quase ouvestígios.
De acordo com Lévy (1998):
"[...] Em vez de um texto localizado, fixado num suporte de celulose, no lugar de um pequeno território com um autor proprietário, com começo e fim formando fronteiras, o do World Wide Web confronta-nos com documentos dinâmicos, abertos, ubíquos, indissociáveis de um corpus praticamente infinito. Enquanto a página de celulose figura um território semiótico, a que aparece na tela é uma unidade de fluxos, submetida às limitações da vazão nas redes. Mesmo se nas suas bibliografias ou notas ela se refere a artigos ou livros, a página material é fisicamente fechada. A virtual, em contrapartida, conecta-nos tecnicamente e de imediato, através de vínculos hipertextos, com páginas de outros documentos, dispersas por todo o planeta, que remetem indefinidamente a outras páginas, a outras gotas do mesmo oceano mundial de signos flutuantes".
Como já ocorria com os suportes analógicos, para cada fonte, obra ou registro tornado disponível outros tantos foram destruídos, ou em nosso caso nem passaram à materialização (LÉVY, 1998):
"[...] Levando-se em conta tudo o que foi dito antes, seria importante ressaltar que, atrás de cada documento conservado, há milhares destruídos. [...]
Na sobreposição de centenas de subjetividades e acasos, ele encerra a chave de acesso ao conhecimento do passado. Reafirmando-se seu senhorio dialético, criador/criatura, o documento, em si, torna-se uma personagem histórica, com a beleza da contradição e da imprevisibilidade, com as marcas do humano".
A fluidez, velocidade e interconexão na produção Web 2.0 colocam lado a lado Memória e Esquecimento, só que no sentido de interrupções de conexões, perdas de links e obsolescência.
Será necessário entendermos e lidarmos com tais coisas. A obsolescência torna-se aqui metáfora para o esquecimento em tempos de imediaticidade e compartilhamento.
Escrito por: Eliana Rezende - Curitiba, Março, 2014
Sobre os tempos de tintas digitais, escritos e leitores, as questões são muitas e permanecem sem reposta:
Como será, em um futuro distante, tecer o que era a vida privada de toda uma sociedade a partir de correspondências mantidas por meio de correios eletrônicos, enviadas em cópias ocultas ou em blogs que deixaram de existir?
Soluções como herança digital já aparecem em preocupações de inventários e órfãos digitais surgem todos os dias após a morte de produtores de conteúdos em blogs e outras formas de presença virtual. Quem cuidará dessa herança? Quanto dela sobreviverá às perdas inerentes da obsolescência de que são vítimas?
Como mapear as imagens destruídas e por quais motivos, diante da obsolescência galopante de máquinas, equipamentos e arquivos?
Como tratar volume e dispersão de produções individuais e sociais perdidas em uma malha digital?
E o que dizer da produção da chamada imprensa oficial, que por séculos representava o pensamento organizado de segmentos da sociedade? Representantes em tempos áureos da voz de uma minoria, e que atualmente cede espaço para inúmeras outras vertentes de pensamento que coabitam as sociedades e que se exprimem por inúmeros veículos de comunicação. São vozes dissonantes que registram fatos, impressões e dão sobre eles interpretações subjetivas e locais.
E sobre contextos e circulação? Como defini-los? Eis aqui uma grande dificuldade!
Quem é o leitor e quem é o autor em ambientes da web? Qual é o produto e de quem é sua propriedade?
Indicações materiais de autenticidade (tão caras à diferentes pesquisadores) tais como: assinaturas, datas e outros indícios buscados como preciosidades em cartas, imagens e outros documentos passam a encontrar sérias dificuldades quando não se sabe quem, quando, onde e sob que circunstâncias tais registros foram produzidos.
Nesse sentido, a construção de tessituras sociais com camadas e espessuras próprias necessitará, por parte de quem investiga, maior fôlego e sutileza. Afinal, as relações construídas partirão de universos que irão muito além dos espaços compartilhados geograficamente. Haverá partilhas em espaços virtuais, onde as proximidades e distanciamentos se construirão a partir de outras propostas, usos e funções. Repensar estas teias e compreendê-las em suas dimensões será um grande desafio.
A cultura de consumo e produção excessiva cria um culto ao descarte e a voracidade que impossibilita atividades simples como o reter, o guardar para o porvir.
Muitas serão as questões para problematização que futuros historiadores e demais pesquisadores encontrarão. Talvez um ponto de partida seja tomar em consideração que a pesquisa, seja ela histórica ou para outros fins, precisa se adequar ao novo ambiente que temos: Escrito por: Eliana Rezende - Curitiba, Março, 2014
A escrita, tal como a leitura, ganha novas formas de manifestação (CUNHA, 2011):
"[...] Ação da mão sobre papéis, sobre telas, sobre pedras e onde mais for possível deixar traços, a escrita registra, inventa e conserva sempre mais ou menos, ao contar, muitos atos da experiência humana. Como ferramenta de uso social, a escrita pode salvar do esquecimento ao fixar no tempo vestígios de passados e, assim, escrever se constitui em uma forma de produção de memória e, por conseguinte, em instrumento de construção do passado."
E aqui chegamos ao ponto inicial: a escrita é ferramenta de uso social e meio de tentar explicar e entender o ambiente que cerca indivíduos, sociedades e culturas. São impressões de mundo que se materializam em diferentes suportes, e que por tentar salvar do esquecimento oferecem vestígios de um passado, de um tempo que não mais nos pertence.
São com tais ferramentas que o investigador lapida e perscruta o passado, buscando em suas frestas algum lampejo que revele nuances de um tempo que se foi.
Fonte: http://pensadosatinta.blogspot.com.br/2014/04/em-tempos-de-tintas-digitais-escritos-e.html